Vitória mudou

Cidade Sol, com o céu sempre azul
Tu és um sonho de luz norte a sul
Meu coração te namora e te quer
Tu és Vitória um sorriso de mulher.
Pedro Caetano.

Dizem os antigos que em Vitória o inverno chegava duas ou três vezes por ano. É quando batia o vento Sul. O resto do tempo era um clima gostoso, nem frio nem quente, delícia de viver, bom para tormar a fresca nas noites de calmaria, conversar com os vizinhos na calçada e dormir de janela aberta. Era assim desde sempre.

Eu nasci na maternidade do Dr. Arnaldo, na Praia do Canto, que hoje deu lugar ao Shopping Boulevar da Praia, num tempo em que tinha bonde nas ruas e cinema nos bairros: América, De Lourdes e o Trianon em Jucutuquara. Tempo de ruas vazias de carros que até dava para jogar pelada com bola de meia, descalço, em plena Paulino Müller. Quando vinha um ônibus, sempre da linha São Torquato-Jucutuquara, tinha tempo de parar o jogo para logo em seguida recomeçar sem sustos e sem perigo.

Naquela época, gente bacana de Vitória viajava para para o Rio de Janeiro para comprar roupas e acessórios da moda. Época em que era chique circular pelas boutiques da Rua Sete, recém-fechada ao trânsito de automóveis.

Eu me lembro do antigo mercado da Vila Rubim antes da grande reforma, com urubus sobre os montes de lixo e voando em círculos sobre as barracas, ruelas e becos, coisa típica de uma cidade atrasada como, aliás, anos depois declarou aborrecido o craque de bola Paulo Cezar Caju:

- Nunca mais volto para jogar nesta província.

Foi embora e foi tarde. Pelo que sei, nunca mais voltou. Foi melhor assim.

Vitória tinha o Blitz Bar, lugar da boemia, refúgio daqueles que não tinham mais para onde ir depois de fechados os botecos da cidade. Era lá que se dava continuidade à bebedeira. Ou se recuperava dela com o inesquecível caldo verde servido em cumbucas fumegantes e acompanhado de torradas de pão francês – verdadeiro sopro de vida na alma depois de tanta cana.

Ao amanhecer, o café da manhã era no Bar Santos.

Os puteiros, ah! Os puteiros! – se espalhavam pela cidade: Bar Rock em Jucutuquara, Motel Veneza em Jardim da Penha, Motel Resende, da famosa Aurora Gorda, em Jardim Camburi, e tantos outros. Depois, todos foram para Carapebus. Lá, a Boate Atlântica era o destaque.

Hoje, a cidade é diferente de como era, está mais bonita, urbanizada; tudo mudou, cresceu e se modernizou, mas continua igual. Lugares, ruas, praias, bares, puteiros ainda existem, é claro, e vão continuar existindo.

Só o calor está exagerado, como são exageradas as chuvaradas que quando caem provocam muito sofrimento na população. Como é exagerada a quantidade de gente que povoa essa terra. Como é que cabe tanta gente numa ilha tão pequena? Tudo mudou mesmo.

Vitória continua espremida entre os morros e o mar, entupida de gente e de carros, tentando parecer cidade grande, mas com ares de cidade pequena, ares de província, como a sinto em meu coração.

Vitória continua linda como sempre foi. Cada vez mais.

O vendedor de quebra-queixo

Tem!
Di-Ca-Ta-Ga-La-Cu-Tem
Di-Ca-Ta-Ga-La-Cu-Tem
Di-Ca-Ta-Ga-La-Cu-Tem
Di-Ca-Ta-Ga-La-Cu-Tem
Tem-Tem-Tem-Temmmm!
Estava lendo o jornal em minha sala, nono andar, quando ouvi ao longe o tilintar inconfundível do vendedor de quebra-queixo. Mudei toda a atenção da leitura e disparei as lembranças para Jucutuquara, o bairro onde morei na infância.

O baticum metálico, o mesmo do passado, alvoroçava a garotada e soava aos ouvidos como música. Bastava ouvi-la e todas as brincadeiras cessavam. Jogo de ferrinho no chão batido, bolinhas de gude nas calçadas sem pavimento, caçar passarinho com estilingue e bolinhas de barro cozidas e as pipas-estrela em cima da Pedra do Bode.

O vendedor não parava de bater o pino de aço no aro de rolimã até que nós nos aproximássemos para comprar o doce feito de coco e açúcar. Receita simples e antiga que às vezes levava um pouco de sumo de limão, dando um sabor especial.

Cada um deles tinha seu próprio timbre e com sutis diferenças no ritmo e no toque, mas geralmente variavam sobre o mesmo tema:
                    Dem!
                    Di-Ga-Di-Ga-La-Gu-Dem
                    Di-Ga-Di-Ga-La-Gu-Dem
                    Di-Ga-Di-Ga-La-Gu-Dem 
                    Di-Ga-Di-Ga-La-Gu-Dem
                    Dem-Dem-Dem-Demmmm!

Essa é uma das inúmeras passagens que povoam minha memória. As brincadeiras naquele tempo eram sempre pelas ruas próximas à Avenida Paulino Müller, numa época em que ainda tinha o bonde circulando paralelo ao valão aberto, ou subir nos morros em torno do bairro. Ficar dentro de casa só quando chovia.

Certo dia, após cortar o cabelo, minha avó Malvina me obrigou a retornar à barbearia porque achava que ainda estava comprido. Obedeci e fui. Novamente ela achou que não estava bom. Obedeci e retornei, mas dessa vez, mandei o barbeiro passar a máquina zero. Tomei uma surra com varinha de oitizeiro.

- É para você aprender a deixar de ser debochado.

Era um tempo em que os pais batiam nos filhos e eles cresciam fortes e normais. Não precisava de psicólogo para tratar os traumas e nem prisão para punir torturadores de menor.

Ganhei o apelido de Careca azul.

            - Careca azul!

Quando alguém me chamava assim, eu me zangava. Saía em disparada tentando achar quem estava me xingando, mas na maioria das vezes não encontrava ninguém, o gaiato se escondia. O tormento durou até o cabelo crescer novamente.

Um dia, um vendedor de quebra-queixo mandou o filho fazer o seu trabalho. Era um garoto do mesmo tope que os da turma. Não sei se por orientação de alguém da turma ou se por iniciativa própria, ao me entregar a minha porção do doce, disse:

            - Tá aí a seu quebra-queixo, careca azul.

Todos da turma começaram a dar risadas. Menos eu. Minha reação quase imediata foi amassar o quebra-queixo na cara do sujeito. Rolamos na poeira, aos murros. O tabuleiro do menino caiu e o vidro partiu. Sobrou quebra-queixo pra todo lado.

Entrou a turma do deixa disso e tudo acabou bem. Pelo menos até o dia seguinte quando o pai do garoto cobrou de minha avó o prejuízo.

Resultado: Outra surra e um castigo – permanecer em casa o dia todo estudando – que durou quase um mês.

Mas nunca deixei de comer quebra-queixo.

A vingança de Hécuba

A paz do mundo começa no coração de cada um.
Preceito Rosacruz.

Por que o homem é violento? Quais são as diferenças entre o comportamento do ser humano atual daquele que vivia no Egito há 6 mil anos ou daquele que estava na Roma de 2 mil anos atrás? E se for considerado o homem em seu nascedouro, por volta dos 70 mil ou 100 mil anos atrás?

Estas perguntas me incomodam por causa da violência tão comum e porque vejo as pessoas se agredindo diariamente em todos os lugares, todos os níveis, sob quaisquer pretextos. Crimes são cometidos a cada segundo, as mortes povoam diariamente as páginas dos jornais. O trânsito aleija e mata. Nações se enfrentam com armas, convivem com o ódio recíproco que atravessa gerações, as pessoas não se dão, a intolerância é crescente. Há aqueles que se matam.

Não há resposta simples e tampouco definitiva porque o homem é um ser complexo e se caracteriza por desempenhar diversos papéis simultâneos na sua existência.

A violência está disseminada em toda a sociedade e promove uma crescente desvalorização da vida, do bom convívio e da paz.

É triste. É nossa realidade.

Tentei saber o que os especialistas dizem a respeito. Busquei informações e descobri que nem mesmo os grandes pensadores convergem suas idéias sobre o tema. Dois deles, Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau, durante os séculos 17 e 18, tratam basicamente sobre o mesmo assunto, mas com abordagens diversas. O primeiro afirma que o homem é mau porque é motivado pela competição (em busca do lucro), a desconfiança (em busca da segurança) e pela glória (em busca da reputação), enquanto o segundo diz que o homem é bom por natureza e que é a sociedade que o corrompe.

Além destes, há outros tantos que também explicam o fenômeno e na maioria das vezes, o que pensam se entrelaça e se complementa, mas nunca propõem solução eficaz para o problema. Todos estão certos em suas conclusões, mas permanece a realidade: A violência não some e nem ao menos diminui ao longo da história da humanidade.

Lembrei que veicula por todo o Brasil na atualidade uma campanha publicitária, cujo título é Conte até 10, cujo objetivo é diminuir a violência na sociedade. São várias peças em várias mídias que orientam o cidadão manter a calma em situações de raiva para evitar o confronto violento. Tudo muito bem, não fossem justamente os protagonistas contratados para veicular a mensagem: Famosos lutadores de MMA (Mixed Martial Arts), esporte violento ao extremo, cuja meta é, segundo o jargão corrente, finalizar o adversário. O que é que significa mesmo finalizar?

Mas, reclamar do que? A quem?

O que pode se esperar de um mundo onde matança pública de boi é considerada esporte nacional, facções que não aceitam a religião de outras pessoas explode tudo e a todos ao redor, onde o escore nos jogos de computador é contado pelo número de pessoas abatidas?

Talvez seja útil, na situação como a que vivemos hoje, refletir sobre a tragédia de Eurípedes, Hécuba, que descreve a violência contra inocentes. Segundo o narrador grego, Hécuba, mulher de Príamo, último rei de Tróia, foi escravizada durante a guerra contra a Trácia e teve seu filho Polidoro e sua filha Polixena mortos por causas menores. Com a ajuda de outros cativos, Hécuba vingou a morte dos filhos, matando os dois filhos do rei da Trácia, Polimister, e em seguida, cegou-o.

Como escrava e sem esperanças, Hécuba arquitetou sua vingança com práticas de extrema violência, numa demonstração de ausência de racionalidade, aliás, uma típica reação da natureza humana. A metáfora discutida na tragédia é a escolha do mal, em detrimento do bem, causada pela desesperança de Hécuba.

E assim como comecei com uma pergunta, termino o texto com outra: Onde vamos chegar se a violência humana não cessar? Ainda há esperança de um mundo em paz?

Viva Rubem Braga!

por Giovanni Angius, em 11/1/2013.

Há um grande vento frio cavalgando as ondas, mas o céu está limpo e o sol muito claro.

Duas aves dançam sobre as espumas assanhadas.

As cigarras não cantam mais.

Talvez tenha acabado o verão.

Rubem Braga.

Se ainda estivesse conosco, seria um velhinho, bem velhinho, e completaria amanhã exatamente 100 anos de vida. Refiro-me a Rubem Braga, o cronista capixaba considerado um dos maiores do Brasil. Para mim, é o melhor de todos. Da sua pena surgiram muito mais que crônicas, o tipo de literatura que envelhece com o passar dos dias, na mesma proporção em que são esquecidos os fatos ou notícias que a geraram. A sua crônica carregava (melhor dizendo, carrega) uma sutil poesia que possui a capacidade de perenizar suas idéias ao longo do tempo, eternizando o preciso instante em que veio à luz do mundo. O instante mágico da criação da arte, antes de se revelar no meio físico onde ela se materializa, sobre a folha de papel em branco. Ele era da época da máquina de escrever.

Nascido numa brava terra, berço de tanta gente importante no mundo das artes, um dia disse que, mesmo com ordens expressas do Todo Poderoso que o proibissem entrar no céu, é provável que, à porta, São Pedro titubeasse em cumpri-las ao ser informado que ele era de Cachoeiro de Itapemirim.

Eu o considero como um farol para onde volto o olhar sempre que me faltam referências ao escrever sobre as coisas que eu vejo no mundo. É como um modelo por onde busco me orientar, um caminho antes trilhado e que agora é mais fácil seguir porque a trilha já foi aberta. Com elegância, mas bem próximo da linguagem comum, sem rebuscamentos, ele estabeleceu um estilo que o colocou em destaque na grande galeria dos escritores brasileiros. Uma vez, ele disse que sempre escrevia para ser publicado no dia seguinte, como o marido que tem que dormir com a esposa todo dia: “pode estar achando gostoso, mas é uma obrigação”. Era seu trabalho, afinal. Tinha rotinas e obrigações a serem cumpridas. Compromisso em entregar o texto na hora certa. Para grande parte das pessoas, escrever uma frase por dia é como romper pedreiras a marreta, uma tarefa fatigante. Agora imagine escrever uma crônica todos os dias, durante anos, sempre de altíssima qualidade, isso sim é um trabalho imenso.

E foi assim que se tornou grande e proporcionou aos seus leitores momentos de deleite com sua obra, inspirando tanta gente interessada no ofício de escrever sobre o cotidiano. Em seu primeiro livro (O Conde e o Passarinho), aos 22 anos, já alertava ao mundo e para quem o lesse que não tinha pretensão de ser conde, antes, orientava sua vida à introspecção, gostava da solidão. Coisas de artista. Melhor dizendo, manias de poeta.

Amanhã e por mais alguns dias, por todo o Brasil, serão publicadas notícias sobre o centenário de nascimento do Velho Mestre. Será uma bela oportunidade para relembrar sua vida e sua obra, trazer aos olhos daqueles que pouco leem, uma arte tão finamente elaborada e de tão prazerosa leitura. Vai ser mostrado que o Rubem, humano, já não está aqui, mas o poeta, este vive vivíssimo.

Pela força que possui o seu texto, Rubem Braga há de viver eternamente, sobreviverá ultrapassando as dimensões físicas do tempo, numa perpétua presença na alma daqueles que o sabem ou o virem a saber.

- Viva Rubem Braga, nosso cronista maior!

- Viva!
 

A falta que a chuva faz

 
O Sol muito quente e a tarde abafada, sem vento, compunham o ambiente perfeito para os etéreis habitantes da praia, os seres privilegiados que a frequentam e permitem expor seus corpos sobre as areias, nos bares da orla ou ao longo do calçadão. Gente quase nua praticando o grande ofício do ócio de se torrar no calor do verão. E eu, na avenida, com uma inveja danada, me sentindo como um pedaço de carne assada no bafo da churrasqueira do carro que inventou de quebrar o ar condicionado justo hoje, que tenho um punhado de coisas para fazer na rua: Cartório, banco e supermercado (Êta programinha ruim!).

Tento minimizar o desconforto levando o pensamento para longe, mas é difícil. Bom mesmo seria também ficar à toa, mas numa sombra bem ampla e refrescos gelados, porque Sol e calor, como hoje, não me agradam.

E foi vagando por esses suarentos pensamentos que me lembrei do problema, este sim, importante: O Brasil está à beira de um racionamento de energia elétrica porque os reservatórios das hidrelétricas estão a níveis muito baixos. A todo instante os noticiários informam que as usinas estão com suas represas cada vez mais vazias por causa da falta de chuva neste verão.

Apesar de possuir a maior bacia hidrográfica do mundo e de ter optado pela geração de energia elétrica através dela (uma decisão historicamente acertada), o Brasil é um país continental e seu consumo é crescente, muitas vezes acima do que é disponibilizado pelo sistema, o que ocasiona, atualmente, na relação consumo/geração um equilíbrio instável. Em passado recente já convivemos com racionamento de energia elétrica.

Num país aonde mais de 90% de sua energia elétrica é de origem hídrica e com restrições políticas e ambientais severas em relação aos projetos de usinas com reservatórios de acumulação, que possuem a capacidade de regular o fluxo de água nas turbinas geradoras, as usinas hidrelétricas a fio d’água são priorizadas, ainda que com polêmicas intermináveis e atrasos nas obras.

Ocorre que em épocas de seca, as usinas a fio d’água simplesmente diminuem sua geração justamente por falta de água. A solução é colocar em funcionamento as termo-elétricas que são tocadas a combustíveis fósseis, que por sua vez, contribuem para o aumento da poluição atmosférica. A conta fica mais cara e adivinha quem paga tudo? Ganha um doce quem acertar...

Sempre sob o mote da defesa do meio ambiente ou de interesses indígenas, as querelas sobre a construção de novas usinas hidrelétricas se arrastam nos meios políticos e acabam na Justiça. E esta, como é do conhecimento geral, contribui fortemente para que os atrasos sejam cada vez maiores. Os custos crescem e embotam aquele que deveria ser o verdadeiro caminho a ser trilhado, qual seja, o de prover o país com fontes de energia capazes de suprir suas necessidades e garantir a segurança para o país e para sua população.

E sabe o insólito neste contexto? A presidente Dilma, ou presidenta, como gosta de ser chamada, insiste em dizer que haverá redução das tarifas de energia elétrica na casa dos 20% para o próximo mês. O povão adorou a notícia. Mas, ao mesmo tempo, o seu Ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, informa que haverá aumento de cerca de 3% nestas mesmas contas por causa da entrada das térmicas em funcionamento. Um espanto. Em quem acreditar? Este é o Brasil...

Mas não há de ser nada porque no final, tudo há de se resolver nesse imenso país abençoado por Deus e bonito por natureza. E Guarapari é logo ali. No próximo sábado, estarei lá, se Deus quiser. Com falta d’água ou não.

São Benedito, o Mouro

Iaiá, você vai à Penha?

Me leva ô, me leva...

Iaiá, você vai à Penha?

Me leva ô, me leva...

Folclore capixaba.

Um dia desses, num bate-papo longo e sem pressa, um senhor idoso, morador da Serra, me contou histórias sobre o Congo, a devoção a São Benedito e como era a vida dos seus antepassados. Melhor dizendo, ele recontou histórias que eu já conhecia e que são bem do conhecimento geral. O que me admirou em sua narrativa foi o quase uso da primeira pessoa para discorrer sobre as histórias. Sendo ele tão antigo e tão ligado à sua cultura, era como se tivesse falado sobre fatos ocorridos diretamente com ele.

De certa forma, sim, acabo fantasiando e acreditando que ele esteve presente na história, porque foi muito claro e convicto em suas palavras, e é até possível recriar na mente a dolorosa noite, no ano 1856, quando um navio transportando escravos naufragou no litoral de Nova Almeida. A bordo, 25 escravos lutando contra a morte iminente, se agarraram ao mastro partido, onde havia fixada uma imagem de São Benedito.

Os homens perceberam que aquele pedaço de pau era sua única chance de sobrevivência, e apelaram para o poderoso santo mouro, filho de escravos, assim como eles o eram. Invocaram São Benedito e rogaram que intercedesse por eles junto a Deus, rezaram e se esforçaram a noite toda durante a tempestade no mar. Quando amanheceu, chegaram à praia, todos vivos. O navio, Palermo, jazia no fundo do mar.

O episódio foi considerado um milagre e a partir daí, todos os anos o povo devoto da Serra homenageia São Benedito com uma festa muito bonita.

Os preparativos começam com a Cortada do Mastro no primeiro domingo depois do dia 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, quando homens entram na mata e de lá trazem um tronco, que é levado para a cidade arrastado por bois enfeitados com flores e ramos verdes.

Em 25 de dezembro, a festa começa com a procissão de São Benedito e em seguida, os fiéis puxam com cordas o barco Palermo, pelas ruas da Serra, montado sobre um carro de boi.

No dia seguinte, 26, pela manhã, com o mastro sobre o barco, os fiéis decoram tudo com bandeirinhas e luzes, e à tardinha, acontece a Puxada do Mastro, quando o navio é levado pelo povo pelas principais ruas da cidade até o pátio em frente à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, onde é realizada a Fincada do Mastro. É o climax da festa.

O rito é consumado no domingo de Páscoa, no ano seguinte, quando os devotos fazem a Derrubada do Mastro. Mais festa.

Ao ouvir sua narrativa, percebi que aquele antigo senhor mais que falava, ele vivia cada palavra e cada imagem que formava para expressar o mais fundo de sua fé; aquilo que me pareceu ser o mais precioso tesouro que havia dentro dele; sua verdade mais cristalina.

E assim, tentei multiplicar, mesmo em vão, por algumas dezenas de milhares aquele sentimento que acabara de testemunhar, para compreender como a fé do povo é importante e cara para toda aquela gente. Então, como poderia não ser verdade, para todos aqueles fiéis, que de fato ocorrera um milagre do santo nos tempos da escravidão? Como dizer que aquilo tudo não aconteceu, se tanta gente testemunha até hoje, e sempre, a interseção de São Benedito, junto às poderosas mãos de Deus, salvando as 25 almas perdidas na molhada e tempestuosa noite de naufrágio?

Aprendi, humildemente, uma lição de fé ante as dificuldades e perigos, quando tudo parece perdido e a morte se aproxima decidida.

Toscana

Deixarás toda a causa a mais querida, chaga primeira de tormentos cheia, do desterro pelo arco produzida.
Sentirás quanto amarga; quanto anseia o sal de estranho pão; que é dura estrada, subir e descer degraus da escada alheia.
Paraíso – Canto XVII – v.19-20 – Dante Alighieri
 

Sentindo saudades da Itália, deixo-me transportar pelo pensamento e me vejo perambulando por pequenas cidades da Toscana, com suas ruas estreitas e casas muitas vezes multicentenárias. São construções onde mãos humanas operaram durante séculos para mantê-las preservadas, no esforço contínuo de perenizar seu modo de vida e sua cultura através dos tempos. Passeio por lugares deslumbrantes por onde pessoas, assim como eu, caminharam a cem, duzentos, quinhentos anos atrás, e assim como hoje, com os seus mesmos problemas, preocupações e perigos, em sua frágil e efêmera condição humana. Enquanto indivíduo, pois que, enquanto coletivo, o homem sobrevive ao tempo, e assim considerado, o mesmo homem que por ali andou, ainda hoje anda, e admira suas belas fachadas, seus contornos e telhados.

Esta região italiana possui encantos que só existem ali. Misture fotos e imagens do mundo todo, e sempre será possível identificar, num olhar de relance, por mais rápido que seja, uma paisagem toscana com seu relevo ondulado, suas árvores típicas e suas intermináveis encostas carregadas de vinhas.

Ah! Os vinhos da Toscana... Chiantis, Brunnellos, e tantos outros, são como um elixir da vida, em que cada gole, sorvido em concentrado respeito e atenção, nos remete às mais sublimes dimensões de beleza e ao mais puro estado de felicidade. É como viver em estado de jóia, testemunhando obras de artistas imortais, responsáveis por elevar o ser humano a categorias distintas dos demais seres da vasta criação, em função da perfeição com que retrata o mundo através de seu trabalho: O belo, o sublime, o perfeito, coisas boas de apreciar, a beleza em seu estado puro.

Chegando a Montalcino, entro numa cantina e peço vinho. Peço também queijo e uns salames, e a vida desacelera em doces ondas de beleza e sonho, pois são daqui importantes vinhos, apreciados no mundo todo por sua robustez e características organolépticas superiores: Os Brunellos e os Rosso di Montalcino.

Frequentes também nas paisagens toscanas são as oliveiras e os girassóis. O azeite toscano é um capítulo à parte.

E foi por aqui também que um sujeito chamado Dante, considerado il sommo poeta, codificou o volgare, a língua falada pelo povão lá pelos anos 1300, e assim surgiu destacada do latim, a língua italiana. É pena que, por motivos outros, Alighieri foi banido injustamente de sua cidade, acabando seus dias em Ravena. Até hoje, Firenze carrega um enorme arrependimento, a tal ponto que ainda o espera com um vazio e riquíssimo monumento funerário, o mauzoléu onde serão depositados os restos mortais daquele que é considerado um dos mais importantes cidadãos fiorentinos de todos os tempos, primeiro e maior poeta da língua italiana.

O que mais poderia dizer sobre meu passeio mental pela Toscana? Que vi Vinci, a cidade de Leonardo? Que apreciei as brancas montanhas de mármore em Carrara? Que vi a torre torta de Pisa? Que subi até o topo do Campanile e de lá, como que ao alcance de minhas mãos pudesse tocar a cupola de Giotto, e logo no sentido inverso os telhados do Battistero di San Giovanni? Que vi de perto o David de Michelangelo na Accademia? Ou todas as obras imortais no maior museu renascentista do mundo, a Galleria degli Uffizi?

Muita coisa eu vi. E quero tornar a ver.

Amor na noite de Natal


A campanhia tocou quando ele finalizou o molho de gorgonzola. “Muito bom, consegui organizar tudo justo na hora que ela chegou”, pensou.

Em segundos abriu a porta e a viu.

            - Linda. Você está linda...

Puxou-a suavemente pelas mãos para dentro do apartamento e a abraçou com ternura.

            - ... e cheirosa.

Ela sorriu e o encarou com seus olhos claros. Beijaram-se ternamente.

            - Então, quero ver se você sabe mesmo cozinhar, ou se é conversa fiada – disse ela brincando e com uma pontinha de ironia na voz.

            - Hoje teremos um menu especial para nossa noite de Natal. Para a Entrada, teremos bruschetta acompanhada de um vinho moscato, um espumante muito bem recomendado pelos críticos. Eu faço com fatias finas e pequenas de baguette, mas com a receita tradicional: tomates picados, azeite, manjericão, orégano, e uma pitada de pimenta-do-reino branca. Não uso pão italiano. Em seguida, você vai experimentar meu filé mignon ao molho de Gorgonzola. Maravilha das maravilhas! Acompanha batatas sauté e pennette di grano duro. Vamos beber um Rosso di Montalcino, safra especial. E para coroar nosso jantar, teremos bananas flambê ao conhaque e vinho de sobremesa. O fogo atrai e fascina.

            - Então é verdade mesmo que você cozinha?

            - Você vai ver. Ou melhor, você vai ver as cores e sentir os aromas; vai comer e se deliciar. Vai ficar um pouco tonta também, porque beberemos vinho. Além de Noel, nesta noite Baco também estará conosco.

            - Humm, isso está parecendo uma orgia, percebo que há más intenções por aqui...

            - Ao contrário, querida, eu diria que são as melhores intenções possíveis.

Deram algumas risadas a caminho da cozinha. Eles viviam o encantamento dos primeiros encontros, e enquanto se conheciam, cada novidade entre os dois os deixavam mais enamorados.

Sentaram à mesa. A brisa suave e morna de verão entrava pela porta da varanda. A música bem escolhida para a ocasião murmurava acordes que soavam em perfeita harmonia com os pratos que ele havia preparado. O tilintar das taças e os brindes ao encontro. A penumbra oscilante de pequenas velas formando um jogo de luz e sombra mostrava, mas também escondia detalhes de seus gestos, fisionomias e roupas.

Jantaram, beberam, riram. Beijaram-se e se amaram numa noite de encantamento, sem sentirem o avançar das horas nos ponteiros do relógio, como se o tempo estivesse parado e não houvesse referências físicas de espaço. Viveram uma embriaguês mágica de ternura e carinho juntamente com a experiência dos cinco sentidos físicos.

O sexo. Desejaram que o tempo cristalizasse após o gozo, e que o mundo se tornasse uma eternidade sonolenta e perfumada.

Assim foi a noite de Natal para aqueles dois amantes que, num acaso cósmico dentro das impossibilidades do caos, se esbarraram e viveram felizes, efêmeros e frágeis momentos de amor.

Adormeceram cansados, e se houvesse uma testemunha naquela noite, ela juraria que Noel e Baco realmente estiveram presentes.

Pela manhã, tomaram café e trocaram pequenos presentes.

- Feliz Natal, amor.

- Feliz Natal.

Pouco depois, ele a acompanhou até à porta e se despediram. Marcaram um encontro para daqui uma semana.

            - Mas preciso confirmar porque não sei como está a programação da galera.

            - Está bem, ficamos assim. Se der a gente se fala.

            - Tchau, então.

            - Ah, você cozinha bem mesmo, cara. Valeu.

O fim do mundo


Hoje, 21/12/2012, começa o verão, estação de praia, calor, chuvas, dengue, e tantas outras coisas, umas boas outras más. Os corpos se desnudam ao sol ou sob a lua, mais cerveja gelada, mais sorrisos, mais festas, mas as enchentes também acontecem nessa época, e vão matar e desabrigar muita gente. Época de posse dos prefeitos eleitos, mas o de Viana está sob suspeita de envolvimento com o tráfico de drogas, e mesmo tendo sido cassada a liminar que impedia sua diplomação pelo Tribunal Regional Eleitoral, está correndo o risco de não efetivar sua administração, caso sejam verdadeiras as acusações a que lhe foram atribuídas.

Continuamos sendo, lembrando Jorge, um “país tropical e bonito por natureza”, mas somos também um país onde há uma luta imensa entre a maldita instituição da corrupção e as instituições que tentam vencê-la através dos mecanismos legais.

E porque os próprios representantes do povo, os que fazem as leis, via de regra são os primeiros que aparecem burlando os dispositivos legais, sempre tive dúvidas se um dia a legalidade vencerá essa guerra.

Fato inusitado foi a tresloucada declaração do deputado Marco Maia (PT-RS), atual presidente da Câmara dos Deputados, diante da expectativa de o Supremo Tribunal Federal decidir se os mensaleiros vão ou não imediatamente para a prisão. Ele surtou de vez ao declarar sua intenção em dar “asilo” aos deputados condenados dentro da própria Casa se for decretada a prisão pelo Ministro Joaquim Barbosa, relator do processo e presidente do STF. Ou seja, além de dar apoio e acoitamento a condenados pela justiça, Sua Excelência demonstra despreso à democracia ao não respeitar uma decisão da Alta Corte da justiça brasileira. Marco Maia é o nome dele.

E por falar em Maia, lembro os Maias que, segundo seu calendário publicado em tempos idos, é hoje o fim do mundo. Será?

Canais de TV a cabo fizeram inúmeros documentários catastróficos durante todo o ano, revistas místicas publicaram artigos e a indústria da derrota, especialmente a dos Estados Unidos, faturou muito com todo tipo de artefato. Abrigos subterrâneos, bunker portátil, flutuantes ao estilo Arca de Noé foram fabricados aos montes, e sem contar que alimentos foram estocados, armas foram adquiridas, cursos preparatórios foram ministrados. Para muitos, o fim, e para outros, a continuidade e a prosperidade..., demonstrando que a morte, como signo do desaparecimento, não passa de uma retomada para as próximas etapas. É a vida que segue.

Apesar da complexa situação que passa o planeta, com dificuldades de toda sorte em todos os continentes, é tão bom viver. Por que o mundo teria que acabar hoje? Por que não depois de mais uns 4 ou 5 bilhões de anos, e isso quando o Sol se apagar?

Sinceramente? Eu não concordo, não quero e não estou preparado para o fim de tudo. E ponto. Quero muito viver e me divertir, beber meus vinhos e ser feliz, e entremeando, um pouco de trabalho porque, afinal, tenho certeza que as contas não vão parar de chegar pontualmente, todos os meses.

Viver até que chegue o meu fim, e não o fim do mundo. E aí depois (quem é que pode ter certeza?), do outro lado, eu possa continuar minha jornada boiando pelas esferas astrais, pela universalidade, pela eternidade, até que um dia, cumprindo as inexoráveis e infalíveis ordens emanadas pelo Grande Chefe, o Grande Arquiteto do Universo, eu retorne para estas paisagens tropicais com o objetivo de consertar alguma coisa que eu eventualmente tenha deixado de executar de maneira satisfatória nesta errática e imperfeita forma humana atual. Cumprir minhas obrigações, cumprir meu karma, e continuar, sempre.

Lua Azul

 
Blue moon, you saw me standing alone

Without a dream in my heart

Without a love of my own.

Lorenz Hart e Richard Rodgers

Uma e pouco da tarde, no trânsito lento de Carapina, na Serra, e retornando para o trabalho depois de conversar com o mecânico que está arrumando o meu Puma, ouvi o Sardenberg perguntando:

            - E aí, pessoal? É temperança ou pé na jaca?

Enquanto os ouvintes do programa na rádio CBN enviavam suas respostas, ele anunciou que hoje está acontecendo um fenômeno raro no céu: Hoje é dia de Lua Azul.

Lua Azul é a segunda lua cheia em um mesmo mês e ocorre uma vez a cada dois ou três anos. A expressão, Blue Moon, foi dada pelo Anuário Astronômico Americano lá pelo século 19. Conforme esclarecimento do locutor, a Lua não fica azul, não aumenta o seu brilho, não altera o seu tamanho. É apenas uma coincidência de calendário.

Mas é aí que entra a genialidade humana que encontra motivação para transformar um fenômeno físico em algo que afeta a existência do ser. Dizem os místicos e outros adeptos que a Lua Azul é uma Lua de Amor, uma época em que os seres viventes, se dada a devida atenção a ela, podem transformar suas vidas em níveis mais elevados de espiritualidade. Os rituais, as oferendas e os luais vão se multiplicar nesta noite por todos os recantos do planeta. Uma parcela importante da população mundial vai se concentrar em planos mais sublimes do convívio humano. Velas serão acesas, preces serão recitadas, haverá meditação, concentração, pedidos e promessas. Muitas pessoas vão se amar mais. Talvez o mundo se torne menos ruim.

Eu, pelo meu lado, às vezes até penso que poderia me transformar numa pessoa mais nobre, com pensamentos mais holísticos e harmoniosos entre o físico e o imaterial, menos egoísta, menos racional; Uma pessoa capaz de olhar para o meu semelhante de forma mais misericordiosa. Mas acabo concluindo, na boa, o que eu queria mesmo, além de ter mais amigos e mais convívio, era mais grana. E depois pensaria em melhorar qualquer coisa na vida e no espírito.

Daí me deu vontade de ligar para o Sardenberg e dar minha opinião:

- Pé na Jaca, com convicção! Até porque hoje é sexta-feira e estou com vontade de abrir uma garrafa de vinho e começar bem o meu fim de semana. Temperança? Nem pensar!

O Sardenberg haveria de dar uma boa risada sobre a minha opinião e teceria algum comentário. E eu estaria satisfeito com minha participação no seu programa de rádio.

Não liguei para ele, mas continuei ouvindo o programa. Interessantes as respostas das pessoas. Percebi que, cada um, ao seu próprio modo, justificava sua escolha relacionando-a sempre a uma situação de trabalho ou de família. Sempre algo exterior a si própria, nunca simplesmente afirmando sua vontade pessoal. Ninguém disse “Quero enfiar o pé na jaca porque quero ser feliz”.

Assim são as pessoas atribuindo a outrem a motivação de suas iniciativas.

O programa ia avançado quando foi dito que a Lua Azul vai acontecer outra vez em julho de 2015.

Logo pensei:

- Isso se o mundo não acabar antes, em 21 de dezembro deste ano, conforme previsão do calendário maia, tão insistentemente veiculada e alardeada nos documentários dos canais da TV a cabo.

            - Será?

Quem viver verá...
 

Uma festa de 2123 anos

 
 

Roberto aproveitou um convite do Arnaldo, um antigo amigo dos tempos do Colégio Estadual, no Forte São João, em Vitória, para passar uns dias em Gramado, Rio Grande do Sul, com a família.

Vida de turista, sem hora para nada, perambulou pelas atrações da cidade com a mulher e a filha até que, num daqueles restaurantes da rua coberta, entre um gole e outro de vinho, o amigo e sua esposa, Selma, apareceram. Depois de tantos anos, o encontro foi alegre. Muitas recordações. Almoçaram e beberam.

Aliás, beberam além da conta. Tudo ia bem até que que o Arnaldinho lascou o convite:

            - Tenho um tio que está aniversariando hoje. Vai ter uma festança na casa dele à noite. Vamos lá?

Tentou argumentar que não conhecia ninguém, seria um intruso na família, ficaria deslocado sem ter com quem conversar, mas não teve como escapar da enrascada. Aceitou o convite.

A mulher e a filha, mais que depressa, arrumaram uma desculpa: Havia uma atração na rua à noite. Não poderiam acompanhá-lo.

Estava só. E mal acompanhado.

            - Vai ser como a travessia de um deserto árido, escaldante e sem vida – pressentiu.

Depois ainda tentou minimizar para se consolar:

            - Esses gaúchos são festeiros. Vai que a festa é animada? Senão, no mínimo, terei o meu amigo para conversar.

            - Tomara - pensou conformado – Tem dias que tudo dá certo, e tem aqueles que a gente passa e depois tenta esquecer.

Na hora marcada, precisamente na hora marcada (Eles não esqueceram!), o casal de amigos estava no hall do hotel, esperando para levá-lo à festa.

Chegando, teve uma surpresa quando avistou várias pessoas, todas idosas, sentadas em cadeiras enfileiradas e encostadas nas paredes ao redor da sala. Ao centro, uma mesa onde estavam servidos os comes e bebes: Sonho com recheio de creme de padeiro e guaraná. Era o que havia. Explicando aos desavisados, sonho aqui são aqueles bolinhos fritos com recheio de creme de gema de ovo.

Ao entrar, todos se voltaram para ele em silêncio. Foi só aí que o seu amigo disse que a festa era para comemorar o aniversário de 100 anos do seu tio-avô.

            - Meu Deus, vai demorar uma vida para acabar! – sussurrou entre os dentes.

Após ser apresentado ao aniversariante, em particular e aos demais, no geral, as conversas foram retomadas, mas sem ele.

Sentiu-se um ser transparente, ninguém o via. Totalmente deslocado no ambiente, amargou horas na animadíssima festa.

Pensou em arrumar um pretexto para ir embora, mas não dava porque estava de carona e não se sentia com coragem para chamar um taxi.

Resignou-se e suportou. Para passar o tempo, fez um jogo mental constituído em atribuir uma idade para cada um dos velhotes presentes. Somou tudo e chegou à surpreendente marca de 2123 anos. Era muita experiência concentrada em pouquíssimos metros quadrados, mas, que festinha chata.

Finalmente, lá pelas tantas, Arnaldinho e sua mulher decidiram que era hora de irem embora.

            - Então – perguntou o amigo no carro durante o retorno para o hotel – gostou da turma?

            - Ah, sim, o pessoal é bem animado, não?

Silêncio. Roberto desconfiou que sua entonação havia denunciado o seu desagrado.

- Também, sujeito sem noção... – pensou.

Dormiu o sono dos justos, aliviado, porque havia passado pelo purgatório da chatice. Amanheceu leve e alegre.

- Família, vida nova, atrações novas. Vamos visitar uma vinícola no Vale dos Vinhedos e nada nos aborrecerá hoje.

Desceram para o café da manhã. De passagem para o refeitório, deram de cara com Arnaldinho no hall os aguardando. Eufórico foi logo dizendo:

            - Bom dia, gente! Hoje teremos um dia ótimo no sítio do meu cunhado, irmão da Selminha. Vamos lá?
 

Aipédi, aipódi, aifone

 


Domingo, mais ou menos uma e meia da tarde, a mulher passando o dia com sua turma de artesanato, os filhos cuidando de suas próprias vidas. Sozinho, fui almoçar no shopping.

Entrei num desses restaurantes de comida padronizada-pasteurizada, coloquei qualquer coisa no prato e fui para a balança pagar. Pedi um chope.

A praça de alimentação estava quase lotada, mas consegui uma mesa bem localizada, de tal modo que pude ver a maioria das pessoas no ambiente.

Almocei sem pressa. Bebi o meu chope. Bebi mais um. Estava melhor que a comida.

Olhando distraído ao redor percebi como tem gente com aparelhos do tipo smartphone. Impressionante, pensei. Todo mundo tem. Uns falando e outros digitando. Eu não tinha noção da quantidade de gente que usa essas maquininhas.

Uma senhora no canto direito falava reclamando algo com alguém do outro lado da linha, enquanto um rapaz ao seu lado a olhava com atenção.

Um adolescente digitava mensagens velozmente; Outro, ferozmente, estava numa luta memorável com um inimigo virtual. Acho que ganhou a guerra, a considerar o sorriso de satisfação que deu quando a musiquinha parou de tocar.

Mas, o que mais chamou minha atenção foi uma família à minha frente. Pai, mãe, duas filhas e cinco telefones em uso. Simultaneamente!

É verdade, tinha umas Coca-Colas e uns sanduíches sobre a mesa, mas quase abandonados. Mais importantes eram os aparelhinhos. Tá certo, de vez em quando alguém dava uma mordida ou um gole no refrigerante. Mas o que se via e ouvia mesmo era uma concentração absoluta nas telinhas e uns grunhidos emitidos por alguém do grupo reagindo contra algo que acontecera no aparelho. Essa era toda a comunicação que faziam entre si, e parece que é o que bastava entre eles.

Nada contra o avanço da tecnologia no mundo. Tecnologia que permite, em tese, promover a aproximação entre as pessoas, mas o que eu percebi foi o distanciamento exagerado entre os membros daquela família. Tão perto uns dos outros na mesa do restaurante e ao mesmo tempo tão distantes.

Foi uma cena patética, até meio triste. Tive receio de ser indiscreto de tanto que eu os observava. Porém, levando em conta como estavam entretidos e absortos em seus mundinhos, não sei se eles poderiam vir a me perceber os observando. Não houve um instante em que eles olhassem ao redor de onde estavam, ou mesmo um instante que se olhassem ou trocassem alguma palavra entre si.

É uma pena ver pais dispensarem a mais simples forma de comunicação com os seus filhos que consiste meramente conversar. Ao invés, se perdem em algo que, penso comigo, é uma perda de tempo. Sim, porque o tempo passa, e passa ligeiro. Daqui a pouco, as meninas terão se transformado em moças e os pais, envelhecidos, hoje, não terão garantias que fizeram a coisa certa.

Por outro lado, existe a constatação de que esta é a marcha do mundo, e não há como dela fugir, ou lutar contra. Seria a mesma história do herói combatendo moinhos de vento. É lamentável que as pessoas deixem o convívio de lado e passem a valorizar o relacionamento com as máquinas.

Lembrei-me do comercial de um carro que está passando na TV, onde um garotinho, no banco de trás, telefona para o pai ao volante, pedindo que pare num posto de gasolina porque precisa fazer xixi.

Terminado o almoço, permaneci ali à toa. O pessoal da mesa ao lado foi embora e continuei pensando na situação que presenciara.

Momentos depois, para não esquecer os detalhes, eu saquei também meu tablet para tomar algumas notas sobre o que vi, o que agora se transforma nessa crônica.

Meio sem graça, quase ao final do texto, percebi o quão furiosamente estava teclando. E não via nada à minha volta.

É cosi.

E agora, Brasil?



Os Jogos Olímpicos de Londres chegaram ao fim, e agora, usando uma metáfora esportiva, o bastão está nas mãos do Brasil.

Após uma belíssima festa de encerramento em Londres que confirmou o sucesso do maior evento poliesportivo do mundo, a partir de hoje, faltam pouco mais de 1400 dias para a cidade do Rio de Janeiro sediar o próximo espetáculo.

Os números que envolvem o empreendimento são fabulosos. Nada do que acontece ali é pouco. Durante os Jogos, circularam por Londres cerca de 4,5 milhões de turistas e foram realizados mais de seis mil exames antidoping.

Para o Rio de Janeiro são esperados mais de 10 mil atletas olímpicos, e numa consulta na internet, é possível descobrir rapidamente os detalhes, números e expectativas para 2016. Também aqui, como em Londres, tudo será elevado à enésima potência, e não haverá lugar para amadores. É coisa para profissional.

E é justamente aí que reside a preocupação de muita gente séria. Quem conhece minimamente sobre planejamento ou quem está acostumado como as coisas acontecem e são feitas no Brasil, sente arrepios na espinha só de pensar na possibilidade de ver, às portas de 2016, obras inacabadas e ouvir as desculpas e justificativas as mais esfarrapadas possíveis. Isto porque as notícias sobre as providências para o evento mostram que tem muita coisa atrasada, o que, conforme as condições normais de temperatura e pressão aqui em terras tupiniquins, será o mote para a roubalheira e a sacanagem de última hora: Empresas contratadas sem licitação a preços milionários, propinas rolando solto e políticos faturando em cima do povo.

Algum leitor aí já viu este filme antes? Alguém aí lembra o superfaturamento que aconteceu nos Jogos Pan-Americanos de 2007? Há informações que um orçamento inicial de R$400 milhões se transformou em R$5 bilhões no fechamento das contas. Alguém aí é ingênuo o bastante a ponto de acreditar que agora será diferente? Eu não acredito.

Será que o COI não conhece as malandragens, artimanhas e a corrupção que campeia alguns setores da gente bronzeada dessa terra?

Por outro lado, há a constatação que houve involução na conquista de medalhas por parte dos atletas brasileiros nas últimas três Olimpíadas, Grécia (2004), China (2008) e Londres (2012), relativamente aos investimentos públicos aplicados no esporte em geral. Ou seja, a fração Reais sobre Medalhas diminuiu.

Sempre houve reclamações sobre a falta de dinheiro e incentivos do Governo, mas agora, se não o mundo perfeito, pelo menos há a destinação para tal. E então, como explicar a retração das conquistas? Falta de competitividade? Recursos mal aplicados? Serão sempre muitos os motivos. Mas, tenho certeza que haverá sempre um cara-de-pau, um caradura, com razões e explanações convincentes para justificar o fiasco, o subdesenvolvimento esportivo, a baixa performance dos homens e mulheres de nossa pátria-mãe gentil.

É fato: Amarelamos em Londres. Dê uma olhadela, alheia às emoções patrióticas, nos momentos decisivos em alguns esportes nesta última Olimpíada e você vai constatar que quase chegamos lá. Quase. Apenas isso.

E é bom lembrar que no meio do caminho, em 2014, há outra obra faraônica pela frente: A Copa do Mundo de Futebol.

Deus permita que eu esteja errado no que aqui escrevo, e que minha falta de crença não nos leve ao fracasso. Eu torço, e o que me resta é somente torcer, que tudo dê certo nesses dois grandiosos acontecimentos e que o Brasil se eleve vitorioso nos Jogos e na Copa. Se não no número de medalhas, pelo menos no uso honesto dos recursos públicos: O povo brasileiro há de gostar e aplaudir.