Praias de desertas

 
Praia do Canto depois de uma chuvarada,

a sombra da manhã sob suas castanheiras frondosas,

a areia fria, o cheiro de maresia e pescadinha frita no Miramar.

Durante minha infância chegar cedo à praia me dava muito prazer. Ao longo de minha meninice foram muitos momentos inesquecíveis. Mas o bom mesmo era andar nas praias desertas.

Hoje não gosto mais. O sol me queima mais do que bronzeia, a claridade atrapalha mais do que encanta, o calor incomoda mais do que conforta, e a quantidade de gente é insuportavelmente grande.

Como era bom chegar à beira mar e olhar para o horizonte e me perder em devaneios. Ou simplesmente não pensar em nada. Ou ainda deixar o pensamento navegar ao som e no ritmo das ondas quebrando na areia. Lembro-me das caminhadas intermináveis em praias infinitas e de horizontes desobstruídos, o marulho incessante das vagas misturado e se confundindo com o chiado das gaivotas à procura de algum pedaço de peixe miúdo descartado por pescadores após a puxada de uma rede de arrastão.

Em um desses dias antigos, caminhando na praia de Conceição da Barra junto com minhas querelas, eu comigo mesmo, me vi diante a uma carcaça de tartaruga descarnada e seca. Nunca pude reconhecer sua espécie. A praia nesta época, antes do tempo em que o mar resolveu entrar cidade adentro e retomar seus domínios, ainda tinha uma faixa de areia extensa e quase horizontal, sem declive aparente. De tão plana, era possível disputar peladas durante a baixa-mar.

Passando perto do bicho observei que havia linhas e cordas emboladas em seu corpo e é provável que tenha permanecido presa numa rede até sua morte. Foi uma cena que me fez pensar sobre o quanto aquele animal teria percorrido o mundo afora, e agora, naquele instante jazia silenciosamente entre artefatos plásticos para pesca no mar.

Soube naquele mesmo dia que um comerciante do lugar recolheu a carcaça para limpá-la e colocá-la em exposição em sua loja, como um troféu.

Após ter passado por ela, interrompi minha caminhada mais adiante e sentei-me na areia. Como teria sido sua agonia final entre as tramas de nylon e o afogamento? Por quais mares ela teria passado e quantos anos teria. Muitos anos sem dúvida, ela era grande, cerca de um metro.

Saí da praia e fui cuidar da vida. As férias acabaram e o verão passou. Voltei para casa e nunca mais pensei no assunto. Retornei ao lugar umas poucas vezes, até que, neste fim de semana novamente em Conceição da Barra, passei em frente a uma loja especializada em material para pesca. Suponho que seja a mesma onde o tal comerciante havia resgatado a tartaruga porque, ao entrar no recinto, eu a vi num dos cantos do salão.

Ela estava lá, mas sem as cordas atrapalhando sua respiração e ostentando um brilho de verniz amarelecido pelo tempo. Fiz uma conta rapidamente: 36 anos se passaram desde aquela manhã em que eu caminhava na praia. 36 anos se passaram...

O tempo passou muito rápido afinal de contas: veio meu casamento, vieram os filhos, muito trabalho, os desafios, as dívidas, a quitação das dívidas. Sobrevivi a um aneurisma na aorta ascendente e tantas e tantas outras encrencas. Toquei minha vida ao ritmo alucinante das transformações atuais do mundo. Assisti a tudo e participei de tudo. Enquadrado fui e enquadrado estou na vida em sociedade: Essa multidão que caminha, sabe Deus para onde, até um dia em que terminar numa praia deserta, enlaçado em fios e cordas, sufocado e abandonado.

Eu continuo, incansavelmente e até quando não sei, a caminhar sozinho em praias desertas.

As besteiras do capitão

 
o mar não está para peixe.

Soube da notícia do acidente com o Costa Concordia ocorrido há três dias no Mar Tirreno, em frente à Ilha Giglio, nas costas da Italia, um transatlântico com capacidade para 3780 passageiros e 1110 tripulantes em 1500 cabines espalhadas nos seus 290 metros de comprimento.

Foi uma notícia espantosa mais em função do comportamento do seu comandante do que em função das dimensões do acidente. Os jornais informaram que o capitão, o italiano Francesco Schettino, aproximou a embarcação da costa fazendo uma manobra arriscada e não autorizada pelas cartas náuticas. O resultado foi um rasgo no casco, o navio emborcado e perdido, uma ameaça de desastre ambiental se o seu óleo, cerca de 2400 toneladas, não for retirado a tempo e seis pessoas mortas até o momento. Mas todos os demais se salvaram inclusive o próprio capitão, um dos primeiros a escapulir e chegar em terra firme, não cumprindo a tradição do mar que diz que o capitão é sempre o último a abandonar o barco. As autoridades italianas trancafiaram o Francesco. Não por ter provocado a perda de um navio gigantesco e com apenas 5 anos de operação, mas por ter se omitido em suas funções.

Este episódio me lembra outros fatos do cotidiano que carregam o mesmo sentido trágico, mas dessa vez em terras capixabas, mais próximos de nossas casas, em nossa vizinhança: As mesmas perdas provocadas pelas improvisações, pelas não providências identificadas e não tomadas a tempo, as perdas do não cumprimento do planejado, a negligência, a corrupção ... Quanta coisa que se perde pela não ação e pela omissão.

É de conhecimento das autoridades que as chuvas no Sudeste brasileiro ocorrem entre novembro e março. Os administradores públicos sabem disso. Todos sabem disso. No entanto, há uma tragédia anunciada para todos os anos: as enchentes, os alagamentos, os desabrigados, os desamparados, as explicações vazias dos prefeitos, as verbas emergenciais, as cenas de desespero, mas no final de tudo, passado o tempo, não se faz o que precisa ser feito. Então, depois de um ano, começa tudo de novo, e entre uma enchente e outra as verbas não chegam onde são necessárias, pessoas enriquecem indevidamente e políticos se locupletam. E o povo ... Bem, o povo que se vire. Sempre se virou ...

Os moradores de Vila Velha, Viana, Cariacica, Serra, e de muitos outros municípios do estado penam todos os anos com o descaso e com a falta de respeito. E há um componente cruel nessa história: a publicidade oficial que tenta mostrar justamente para o próprio povo que tudo está bem e em perfeito estado de ordem.

Certos prefeitos demonstram total falta de sensibilidade e de caráter quando ordenam a divulgação de mensagens mentirosas, pela boca de crianças contratadas, informando que o sistema de saúde é o melhor, que todas as ruas foram pavimentadas, que não há mais filas, que a segurança isso, que a educação aquilo, enquanto a realidade está aí a olhos escancarados evidenciando uma disparidade imensa entre o que é dito e o que está disponível para a população. Mentiras descaradas, mentiras nojentas.

A cerca de quatro anos, um prefeito da Grande Vitória chegou a divulgar nas rádios e na TV, através da bela e grave voz de um grande ator brasileiro, que todos os problemas de enchentes em seu município haviam sido resolvidos. Menos de um ano depois, como era de se esperar o lugar estava debaixo de água. Novamente.

Assim como aquele capitão que foi encarcerado pela omissão de suas funções na Toscana, como seria bom e importante para o moral do povo brasileiro se houvesse um jeito de trancafiar nossos administradores que não cumprem com os seus compromissos e obrigações.

Porque eu escrevo, ou melhor, porque não escrevo

 
véspera do Natal.

Desde muito tempo digo para mim mesmo que escrevo bem, porém sempre me ocorre simultaneamente o pensamento que isso não é verdade. E começo a enumerar as tantas razões para me justificar: Não tenho disciplina para escrever na periodicidade requerida para o aprendizado, idéias recorrentes e repetitivas, falta de criatividade, falta de estilo, não domínio da gramática, vocabulário restrito, discordância de idéias e incoerência de pensamento entre uma coisa escrita agora em relação a outros textos anteriores, incoerência de pensamento entre o que digo ou que escrevo e o que faço, enfim, um monte de coisas que me vêm à cabeça que me fazem sentir desânimo em continuar escrever.

Tempos depois, revendo esses pensamentos, acredito que tudo aquilo são apenas desculpas, esfarrapadas sem dúvida, para eu não continuar tentando.

Queria escrever como os grandes cronistas? Sim, certamente. Vivo lendo e relendo Rubem Braga e Fernando Sabino, dentre outros tantos, repasso constantemente poetas como Manuel Bandeira, Drummond e Vinícius, vou aos antigos escritores. Queria desenvolver um estilo? Sim, queria. E queria que o meu estilo fosse daqueles que se lê fácil, sem rebuscamentos, contando histórias do dia a dia de forma trivial e descompromissada, simples, mas ao mesmo tempo fiel à realidade e com minhas interpretações pessoais, sem pieguices num extremo e sem ser repórter de jornal no outro. Sem ter o pensamento apegado a coerências políticas ou de escolas literárias. Apenas escrever contando histórias. Queria escrever com frequência e produzir muitos textos com qualidade? Queria que pessoas lessem minhas idéias? Claro que sim.

Mas não escrevo o suficiente, não tenho um estilo formado, não tenho domínio sobre a língua portuguesa e não sei distinguir as diversas correntes literárias. Não tenho disciplina e constância para escrever minhas idéias.

Isso: idéias. Idéias eu as tenho, e muitas, mas a inércia – pode chamar de preguiça – me impede de sentar na frente do computador e escrever. Trabalhar, suar a camisa, fritar os miolos para enfileirar letras, palavras, formar frases e parágrafos para que minhas idéias se tornem concretas, e enfim, meu pensamento criar forma a partir de uma folha em branco.

Hoje eu li no suplemento Pensar, de A Gazeta, uma crônica do Rubem Braga: Natal. E foi ela que me motivou escrever. Não pelo conteúdo da crônica narrada, mas pela forma como foi escrita. É como ouvir Baden Powell, Erik Clapton ou Toquinho. Não cansa nunca e é tão bom que até parece fácil fazer igual. É a arte em seu estado mais perfeito. Simples e perfeito. Li o texto do Rubem Braga e me embriaguei com sua facilidade em escrever, assim como ele se embriagou no uísque que bebeu antes de sair de casa para visitar uma família amiga, conforme sua narrativa.

Hoje à noite eu também vou filar humildemente umas fatias de presunto e de alegria em uma casa de amigos, mas ao contrário do Mestre, não terei realizado uma obra de arte e a deixado como exemplo para os próximos que hão de vir.