São Benedito, o Mouro

Iaiá, você vai à Penha?

Me leva ô, me leva...

Iaiá, você vai à Penha?

Me leva ô, me leva...

Folclore capixaba.

Um dia desses, num bate-papo longo e sem pressa, um senhor idoso, morador da Serra, me contou histórias sobre o Congo, a devoção a São Benedito e como era a vida dos seus antepassados. Melhor dizendo, ele recontou histórias que eu já conhecia e que são bem do conhecimento geral. O que me admirou em sua narrativa foi o quase uso da primeira pessoa para discorrer sobre as histórias. Sendo ele tão antigo e tão ligado à sua cultura, era como se tivesse falado sobre fatos ocorridos diretamente com ele.

De certa forma, sim, acabo fantasiando e acreditando que ele esteve presente na história, porque foi muito claro e convicto em suas palavras, e é até possível recriar na mente a dolorosa noite, no ano 1856, quando um navio transportando escravos naufragou no litoral de Nova Almeida. A bordo, 25 escravos lutando contra a morte iminente, se agarraram ao mastro partido, onde havia fixada uma imagem de São Benedito.

Os homens perceberam que aquele pedaço de pau era sua única chance de sobrevivência, e apelaram para o poderoso santo mouro, filho de escravos, assim como eles o eram. Invocaram São Benedito e rogaram que intercedesse por eles junto a Deus, rezaram e se esforçaram a noite toda durante a tempestade no mar. Quando amanheceu, chegaram à praia, todos vivos. O navio, Palermo, jazia no fundo do mar.

O episódio foi considerado um milagre e a partir daí, todos os anos o povo devoto da Serra homenageia São Benedito com uma festa muito bonita.

Os preparativos começam com a Cortada do Mastro no primeiro domingo depois do dia 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, quando homens entram na mata e de lá trazem um tronco, que é levado para a cidade arrastado por bois enfeitados com flores e ramos verdes.

Em 25 de dezembro, a festa começa com a procissão de São Benedito e em seguida, os fiéis puxam com cordas o barco Palermo, pelas ruas da Serra, montado sobre um carro de boi.

No dia seguinte, 26, pela manhã, com o mastro sobre o barco, os fiéis decoram tudo com bandeirinhas e luzes, e à tardinha, acontece a Puxada do Mastro, quando o navio é levado pelo povo pelas principais ruas da cidade até o pátio em frente à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, onde é realizada a Fincada do Mastro. É o climax da festa.

O rito é consumado no domingo de Páscoa, no ano seguinte, quando os devotos fazem a Derrubada do Mastro. Mais festa.

Ao ouvir sua narrativa, percebi que aquele antigo senhor mais que falava, ele vivia cada palavra e cada imagem que formava para expressar o mais fundo de sua fé; aquilo que me pareceu ser o mais precioso tesouro que havia dentro dele; sua verdade mais cristalina.

E assim, tentei multiplicar, mesmo em vão, por algumas dezenas de milhares aquele sentimento que acabara de testemunhar, para compreender como a fé do povo é importante e cara para toda aquela gente. Então, como poderia não ser verdade, para todos aqueles fiéis, que de fato ocorrera um milagre do santo nos tempos da escravidão? Como dizer que aquilo tudo não aconteceu, se tanta gente testemunha até hoje, e sempre, a interseção de São Benedito, junto às poderosas mãos de Deus, salvando as 25 almas perdidas na molhada e tempestuosa noite de naufrágio?

Aprendi, humildemente, uma lição de fé ante as dificuldades e perigos, quando tudo parece perdido e a morte se aproxima decidida.

Toscana

Deixarás toda a causa a mais querida, chaga primeira de tormentos cheia, do desterro pelo arco produzida.
Sentirás quanto amarga; quanto anseia o sal de estranho pão; que é dura estrada, subir e descer degraus da escada alheia.
Paraíso – Canto XVII – v.19-20 – Dante Alighieri
 

Sentindo saudades da Itália, deixo-me transportar pelo pensamento e me vejo perambulando por pequenas cidades da Toscana, com suas ruas estreitas e casas muitas vezes multicentenárias. São construções onde mãos humanas operaram durante séculos para mantê-las preservadas, no esforço contínuo de perenizar seu modo de vida e sua cultura através dos tempos. Passeio por lugares deslumbrantes por onde pessoas, assim como eu, caminharam a cem, duzentos, quinhentos anos atrás, e assim como hoje, com os seus mesmos problemas, preocupações e perigos, em sua frágil e efêmera condição humana. Enquanto indivíduo, pois que, enquanto coletivo, o homem sobrevive ao tempo, e assim considerado, o mesmo homem que por ali andou, ainda hoje anda, e admira suas belas fachadas, seus contornos e telhados.

Esta região italiana possui encantos que só existem ali. Misture fotos e imagens do mundo todo, e sempre será possível identificar, num olhar de relance, por mais rápido que seja, uma paisagem toscana com seu relevo ondulado, suas árvores típicas e suas intermináveis encostas carregadas de vinhas.

Ah! Os vinhos da Toscana... Chiantis, Brunnellos, e tantos outros, são como um elixir da vida, em que cada gole, sorvido em concentrado respeito e atenção, nos remete às mais sublimes dimensões de beleza e ao mais puro estado de felicidade. É como viver em estado de jóia, testemunhando obras de artistas imortais, responsáveis por elevar o ser humano a categorias distintas dos demais seres da vasta criação, em função da perfeição com que retrata o mundo através de seu trabalho: O belo, o sublime, o perfeito, coisas boas de apreciar, a beleza em seu estado puro.

Chegando a Montalcino, entro numa cantina e peço vinho. Peço também queijo e uns salames, e a vida desacelera em doces ondas de beleza e sonho, pois são daqui importantes vinhos, apreciados no mundo todo por sua robustez e características organolépticas superiores: Os Brunellos e os Rosso di Montalcino.

Frequentes também nas paisagens toscanas são as oliveiras e os girassóis. O azeite toscano é um capítulo à parte.

E foi por aqui também que um sujeito chamado Dante, considerado il sommo poeta, codificou o volgare, a língua falada pelo povão lá pelos anos 1300, e assim surgiu destacada do latim, a língua italiana. É pena que, por motivos outros, Alighieri foi banido injustamente de sua cidade, acabando seus dias em Ravena. Até hoje, Firenze carrega um enorme arrependimento, a tal ponto que ainda o espera com um vazio e riquíssimo monumento funerário, o mauzoléu onde serão depositados os restos mortais daquele que é considerado um dos mais importantes cidadãos fiorentinos de todos os tempos, primeiro e maior poeta da língua italiana.

O que mais poderia dizer sobre meu passeio mental pela Toscana? Que vi Vinci, a cidade de Leonardo? Que apreciei as brancas montanhas de mármore em Carrara? Que vi a torre torta de Pisa? Que subi até o topo do Campanile e de lá, como que ao alcance de minhas mãos pudesse tocar a cupola de Giotto, e logo no sentido inverso os telhados do Battistero di San Giovanni? Que vi de perto o David de Michelangelo na Accademia? Ou todas as obras imortais no maior museu renascentista do mundo, a Galleria degli Uffizi?

Muita coisa eu vi. E quero tornar a ver.

Amor na noite de Natal


A campanhia tocou quando ele finalizou o molho de gorgonzola. “Muito bom, consegui organizar tudo justo na hora que ela chegou”, pensou.

Em segundos abriu a porta e a viu.

            - Linda. Você está linda...

Puxou-a suavemente pelas mãos para dentro do apartamento e a abraçou com ternura.

            - ... e cheirosa.

Ela sorriu e o encarou com seus olhos claros. Beijaram-se ternamente.

            - Então, quero ver se você sabe mesmo cozinhar, ou se é conversa fiada – disse ela brincando e com uma pontinha de ironia na voz.

            - Hoje teremos um menu especial para nossa noite de Natal. Para a Entrada, teremos bruschetta acompanhada de um vinho moscato, um espumante muito bem recomendado pelos críticos. Eu faço com fatias finas e pequenas de baguette, mas com a receita tradicional: tomates picados, azeite, manjericão, orégano, e uma pitada de pimenta-do-reino branca. Não uso pão italiano. Em seguida, você vai experimentar meu filé mignon ao molho de Gorgonzola. Maravilha das maravilhas! Acompanha batatas sauté e pennette di grano duro. Vamos beber um Rosso di Montalcino, safra especial. E para coroar nosso jantar, teremos bananas flambê ao conhaque e vinho de sobremesa. O fogo atrai e fascina.

            - Então é verdade mesmo que você cozinha?

            - Você vai ver. Ou melhor, você vai ver as cores e sentir os aromas; vai comer e se deliciar. Vai ficar um pouco tonta também, porque beberemos vinho. Além de Noel, nesta noite Baco também estará conosco.

            - Humm, isso está parecendo uma orgia, percebo que há más intenções por aqui...

            - Ao contrário, querida, eu diria que são as melhores intenções possíveis.

Deram algumas risadas a caminho da cozinha. Eles viviam o encantamento dos primeiros encontros, e enquanto se conheciam, cada novidade entre os dois os deixavam mais enamorados.

Sentaram à mesa. A brisa suave e morna de verão entrava pela porta da varanda. A música bem escolhida para a ocasião murmurava acordes que soavam em perfeita harmonia com os pratos que ele havia preparado. O tilintar das taças e os brindes ao encontro. A penumbra oscilante de pequenas velas formando um jogo de luz e sombra mostrava, mas também escondia detalhes de seus gestos, fisionomias e roupas.

Jantaram, beberam, riram. Beijaram-se e se amaram numa noite de encantamento, sem sentirem o avançar das horas nos ponteiros do relógio, como se o tempo estivesse parado e não houvesse referências físicas de espaço. Viveram uma embriaguês mágica de ternura e carinho juntamente com a experiência dos cinco sentidos físicos.

O sexo. Desejaram que o tempo cristalizasse após o gozo, e que o mundo se tornasse uma eternidade sonolenta e perfumada.

Assim foi a noite de Natal para aqueles dois amantes que, num acaso cósmico dentro das impossibilidades do caos, se esbarraram e viveram felizes, efêmeros e frágeis momentos de amor.

Adormeceram cansados, e se houvesse uma testemunha naquela noite, ela juraria que Noel e Baco realmente estiveram presentes.

Pela manhã, tomaram café e trocaram pequenos presentes.

- Feliz Natal, amor.

- Feliz Natal.

Pouco depois, ele a acompanhou até à porta e se despediram. Marcaram um encontro para daqui uma semana.

            - Mas preciso confirmar porque não sei como está a programação da galera.

            - Está bem, ficamos assim. Se der a gente se fala.

            - Tchau, então.

            - Ah, você cozinha bem mesmo, cara. Valeu.

O fim do mundo


Hoje, 21/12/2012, começa o verão, estação de praia, calor, chuvas, dengue, e tantas outras coisas, umas boas outras más. Os corpos se desnudam ao sol ou sob a lua, mais cerveja gelada, mais sorrisos, mais festas, mas as enchentes também acontecem nessa época, e vão matar e desabrigar muita gente. Época de posse dos prefeitos eleitos, mas o de Viana está sob suspeita de envolvimento com o tráfico de drogas, e mesmo tendo sido cassada a liminar que impedia sua diplomação pelo Tribunal Regional Eleitoral, está correndo o risco de não efetivar sua administração, caso sejam verdadeiras as acusações a que lhe foram atribuídas.

Continuamos sendo, lembrando Jorge, um “país tropical e bonito por natureza”, mas somos também um país onde há uma luta imensa entre a maldita instituição da corrupção e as instituições que tentam vencê-la através dos mecanismos legais.

E porque os próprios representantes do povo, os que fazem as leis, via de regra são os primeiros que aparecem burlando os dispositivos legais, sempre tive dúvidas se um dia a legalidade vencerá essa guerra.

Fato inusitado foi a tresloucada declaração do deputado Marco Maia (PT-RS), atual presidente da Câmara dos Deputados, diante da expectativa de o Supremo Tribunal Federal decidir se os mensaleiros vão ou não imediatamente para a prisão. Ele surtou de vez ao declarar sua intenção em dar “asilo” aos deputados condenados dentro da própria Casa se for decretada a prisão pelo Ministro Joaquim Barbosa, relator do processo e presidente do STF. Ou seja, além de dar apoio e acoitamento a condenados pela justiça, Sua Excelência demonstra despreso à democracia ao não respeitar uma decisão da Alta Corte da justiça brasileira. Marco Maia é o nome dele.

E por falar em Maia, lembro os Maias que, segundo seu calendário publicado em tempos idos, é hoje o fim do mundo. Será?

Canais de TV a cabo fizeram inúmeros documentários catastróficos durante todo o ano, revistas místicas publicaram artigos e a indústria da derrota, especialmente a dos Estados Unidos, faturou muito com todo tipo de artefato. Abrigos subterrâneos, bunker portátil, flutuantes ao estilo Arca de Noé foram fabricados aos montes, e sem contar que alimentos foram estocados, armas foram adquiridas, cursos preparatórios foram ministrados. Para muitos, o fim, e para outros, a continuidade e a prosperidade..., demonstrando que a morte, como signo do desaparecimento, não passa de uma retomada para as próximas etapas. É a vida que segue.

Apesar da complexa situação que passa o planeta, com dificuldades de toda sorte em todos os continentes, é tão bom viver. Por que o mundo teria que acabar hoje? Por que não depois de mais uns 4 ou 5 bilhões de anos, e isso quando o Sol se apagar?

Sinceramente? Eu não concordo, não quero e não estou preparado para o fim de tudo. E ponto. Quero muito viver e me divertir, beber meus vinhos e ser feliz, e entremeando, um pouco de trabalho porque, afinal, tenho certeza que as contas não vão parar de chegar pontualmente, todos os meses.

Viver até que chegue o meu fim, e não o fim do mundo. E aí depois (quem é que pode ter certeza?), do outro lado, eu possa continuar minha jornada boiando pelas esferas astrais, pela universalidade, pela eternidade, até que um dia, cumprindo as inexoráveis e infalíveis ordens emanadas pelo Grande Chefe, o Grande Arquiteto do Universo, eu retorne para estas paisagens tropicais com o objetivo de consertar alguma coisa que eu eventualmente tenha deixado de executar de maneira satisfatória nesta errática e imperfeita forma humana atual. Cumprir minhas obrigações, cumprir meu karma, e continuar, sempre.