Romaria dos Homens
                                                                                                                                                                                                                                                                                Virgem da Penha, minha alegria,
Senhora nossa, ave Maria.
Frei Alfredo Setaro
Quando chegou a certa idade, o homem começou a nutrir a vontade de participar da Romaria dos Homens, um evento que acontece todo ano durante as festividades em homenagem a Nossa Senhora da Penha. Este ano não foi diferente. No início do ano, já estava pensando em se preparar fisicamente para a caminhada. A partir da Catedral Metropolitana de Vitória, a procissão percorre cerca de 14 quilômetros, sempre à noite, até o santuário da nossa padroeira, no alto do morro em Vila Velha.
Sua motivação em fazer esta peregrinação era buscar a reaproximação espiritual com a religião católica, que percebia estar acontecendo dentro de si, à medida que sua vida avançava nos anos. Nasceu em família católica, foi batizado na Igreja São Sebastião, em Jucutuquara, e fez a Primeira Comunhão na Igreja Nossa Senhora da Vitória, no Forte São João, mas ao longo do tempo mudou suas convicções. Esteve espírita, rosa+cruz e maçom.
Sempre acreditou em Deus, mas um Deus particularmente seu, sem uma concepção precisa de como Ele seria. Às vezes era um velho gordo e barbado, sentado num trono de cristal dourado e soltando peidos megatônicos, mandando e desmandando no Universo. Outras vezes, era uma energia cósmica, misteriosa e transparente, inexorável e simultaneamente presente e entranhada em tudo e na alma de todos. Estudou religiões e filosofias por conta própria. Pesquisou, perguntou, duvidou e inquiriu buscando a Verdade. Sempre acreditou que a alma é imortal e transcendente à vida material, embora em muitas ocasiões também tenha considerado a possibilidade do nada absoluto após o último suspiro na passagem pela jornada terrena.
Mas nos momentos decisivos de sua vida, tanto os alegres quanto os tristes, nas emergências e nos agradecimentos, aqueles momentos nos quais ele depositou toda a confiança e fé, invariavelmente pensava na imagem resplandecente da Mãe Protetora, Nossa Senhora, que, por afinidade e proximidade, é aquela que mora acima dos capixabas, no topo do morro da Penha.
De vez em quando, participava de alguma missa ou em outras ocasiões, precisando pensar, refletir e decidir algo mais sério subia à Penha: Avistando a cidade ao longe, abstraido-se dos seus fluxos, barulhos e agitação, conseguia um direcionamento correto para suas decisões, suas posturas ou mesmo mudanças no rumo da sua vida.
E agora, num momento interior particularmente importante, um sentimento profundo de amor pela vida, aliado a uma necessidade de conciliação com o Alto, a decisão de percorrer a pé a romaria se tornou uma realidade imperativa. E assim foi.
Por todo o percurso, ele rezou, agradeceu e pediu a Nossa Senhora. Sobretudo, agradeceu.
A caminhada se deu numa quente e abafada noite de abril. Sem um único sopro de vento sobre a copa das árvores pelo caminho, ele avançou cada um dos passos suando em bicas. Levando um terço nas mãos como símbolo máximo da religiosidade que queria demonstrar para si mesmo, ele viveu uma experiência muito especial. Lembrou-se das cerimônias a que foi submetido nas Ordens Iniciáticas das quais faz parte. Lembrou-se também da Comunhão que fez na Basílica de São Pedro, no Vaticano, num final de tarde do verão italiano, com os raios de um brilhante Sol penetrando os vitrais da pomba da paz por sobre a Cátedra de São Pedro. Foram experiências místicas belíssimas e cada uma delas, únicas ao seu modo, marcou profundamente sua existência.
Agora, cumprida a missão, ele ressurge diante de si próprio sentindo-se mais forte e com a sensação grandiosa de ter realizado uma tarefa difícil, mas exclusiva: É sua experiência, ele a executou. Ninguém mais o fez por ele.
Ele cresceu mais um pouco.

A mulher, o menino e a estagiária.

 
Lá pelas cinco da tarde o céu escureceu, e tão logo a moça percebeu que ia chover, tratou de correr para buscar abrigo na varanda de uma pequena casa na rua de um bairro distante. Casa de tijolos sem reboco e piso de barro batido, pobre, suja e em ruína, desde a temporada de chuvas do verão passado, estava cada vez pior. Era de se prever seu desabamento a qualquer instante.

A moça fazia um serviço de levantamento das condições de conservação das habitações no bairro, a mando da empresa que havia vencido a licitação para as obras contenção de encostas nos morros e na beira do rio do lugar.

De classe abastada, recém-formada, tinha conseguido aquele estágio para colocar em prática o que aprendera na Faculdade. Era a primeira vez que trabalhava. Ao se colocar sob a cobertura de palha, sentiu um cheiro que lhe provocou asco e o sentimento de repulsa ante aquele chão úmido e desconfortável. Observou que a chuva vinha, de repente, grande e violenta e não era possível sair dali naquele instante.

Buscando pensar em alguma alternativa para se esconder do temporal, olhou ao seu redor e depois para o outro lado da rua, mas nada. Foi aí que percebeu que dentro do casebre havia alguém. Por entre as frestas de uma porta agonizante e quase despencando, viu uma mulher carregando nos braços um diminuto bebê embrulhado em trapos. Ele chorava num fio de voz fraca e sua mãe, na tentativa de fazê-lo acalmar, balançava o menino ao mesmo tempo em que ela também emitia um som mais próximo a um gemido de dor do que uma cantiga para ninar o seu filho.

A visão era forte: A miséria, feia e dolorosa, bem à sua frente e sem pedir licença para se mostrar, provocou nela um impulso irresistível de sair correndo pela rua sob a chuva que já se tornara um aguaceiro, com a água à altura dos tornozelos, dificultando seu deslocamento.

Correu e fugiu da visão mais dolorosa que já havia presenciado pessoalmente.

Naquela mesma noite, em sua casa, soube pelo noticiário da TV que duas pessoas morreram quando a enxurrada arrastou um casebre: Os corpos da mãe e do filho recém-nascido foram localizados bem mais adiante, presos em galhos e destroços do casebre, levados pela enchente.

Mais uma temporada de chuvas e a história se repete: Pessoas desabrigadas ou mortas, desamparo, desespero, doenças, a população pedindo socorro.

Do outro lado, na parte nobre da cidade, denúncias de dois anos, três anos ou mais se acumulam contra políticos e administradores que não se envergonham de embolsar as verbas destinadas à recuperação dos desastres passados. Junto com empreiteiros inescrupulosos, essas pessoas não se intimidam diante da lei e muito menos se compadecem do sofrimento de milhares de pessoas que são despojadas do quase nada que conseguiram juntar, da desesperança pela vida e da tristeza profunda que se abate sobre aqueles que estão sujeitos a tão perversas condições de sobrevivência.

Ano após ano, a situação é a mesma, e não se sabe de uma cidade, ou mesmo de uma pequena comunidade que foi beneficiada com verbas honesta e diligentemente aplicadas para minimizar o sofrimento das vítimas da falta da infra-estrutura necessária para dar continuidade de forma digna à vida que lhes é cabida.

Não existe notícia boa. A corrupção é tamanha, que o escândalo é imediatamente abafado por um outro que certamente acontecerá na semana seguinte. E na outra semana mais outro escândalo e assim sucessivamente. E todos eles minuciosamente investigados e denunciados pela imprensa (Claro, a imprensa, que, ao que parece, é a única instituição que promove ações do tipo). Dessa forma, de escândalo em escândalo, a vida segue.

E a estagiária? Bem, a estagiária, ficou muito triste uns dias, mas depois esqueceu. Tratou de ser feliz.

Mãe e filho? Nunca mais ninguém se lembrou deles.

Vida em família

 
Seu Osmar é um sujeito acostumado com a lida nas grandes obras civis pelo interior do Brasil. Trabalhou em vários estados brasileiros supervisionando a construção de estradas, barragens, açudes e pontes. Com os cabelos fartos e totalmente brancos, tem a pele tostada pelo Sol depois de tantos anos de vida a céu aberto. Está na mesma construtora desde muito tempo e é querido por todos, se bem que de vez em quando algum engenheiro novato, ainda não acostumado com seus modos, se aborrece com sua intromissão e com a franqueza com que fala sobre o resultado de um trabalho malfeito ou mal acabado: “Ficou uma porcaria. Eu te avisei. Depois, não me venha pedir para consertar...”.

Ou então, quando alguém cai no seu agrado, “... escuta o menino, ele é bom, tem futuro na firma”.

Nasceu no Espírito Santo, mas vive em Minas desde sua juventude. Hoje, com 79, pensa em se aposentar. “Mas só um pouco” – diz, “porque ainda tem uns troços aí que preciso resolver antes de parar”.

É que o Seu Osmar está enrolado com suas três mulheres. A esposa descobriu que ele tem duas amantes e a situação pegou fogo.

O caso aconteceu assim: Por causa da natureza do trabalho que executa, Seu Osmar passa grande parte do tempo longe de casa e mora em alojamentos de obra, isolado no mato. Daí, quando tem uma folga mais curta, o caminho é a cidade mais próxima, e em cada uma, um caso amoroso. Ao longo do tempo, ele acabou se envolvendo mais seriamente com duas delas. A primeira, uma antiga conhecida de sua família, e a segunda, uma mulher de 24 anos, morena bonita, cabelos pretos e lisos, “toda durinha” como ele mesmo se refere a ela, promoveu uma devastação em sua vida sentimental. Uma paixão fulminante que deixou Seu Osmar apaixonado. Ele a chama carinhosamente de Mozinho. Vivem num xodó constante. Parecem dois adolescentes que descobriram o amor.

O caldo entornou quando, numa folga maior, estando dormindo em casa, sua mulher atendeu a uma chamada no aparelho celular dele: Era Mozinho, toda dengosa e cheia de saudades, querendo um chamego.

Sua mulher ficou transtornada, só faltava espumar de tanta raiva. Chegou a pegar uma ripa de madeira para acertá-lo, mas como desgraça pouca é bobagem, instantes depois de finalizar a ligação com Mozinho, chegou uma mensagem instantânea da primeira amante dizendo que precisava dele porque o filho estava com febre e o estava levando para o hospital.

Seu Osmar acordou debaixo de ripadas. O pau comeu.

Foi um drama ver a mulher e as duas filhas chorando por causa da infame traição.

            - Valha-me Deus! O meu marido é um adúltero miserável. Tem duas amantes o sem-vergonha, e ainda por cima mais um filho... Desgraçado... Eu mato esse velho babão...

E quanto mais o Seu Osmar tentava explicar, mais se enrolava, e antes que a coisa ficasse pior, deu um jeito de arrumar a mala e saiu de fininho. Quando a mulher se deu conta, já estava longe, a caminho do canteiro de obras em Minas.

            - Como arrumar a situação? - Cismava consigo durante a viagem.

E ainda tinha o filho caçula doente no hospital. Não tivera tempo para telefonar para a primeira amante sobre o que havia acontecido com o menino. Resolveu ir para a casa dela antes de chegar ao alojamento da obra e contar sobre a existência de Mozinho e sobre o que estava acontecendo.

Que ele já era casado, a primeira amante já sabia. O que ela não sabia ainda é que havia mais uma mulher na história.

Depois de conhecer a situação do filho adoentado, acabou se traquilizando porque o garoto já estava medicado e em casa. Sua primeira amante era uma mulher com seus quase quarenta anos, mais madura, sempre calma e ponderada. Regulava com a idade da esposa.

            - É... a casa caiu. No fundo, no fundo, eu tinha certeza de que um dia essa história vinha à tona, mas até eu estou de queixo caído. Então você tem mais uma pra cuidar, né? Você é um velho muito safado. Eu devia te meter a mão na cara. Meter a mão, não, eu devia é te colocar um par de chifres também. Porque chifre de amante dói mais do que de esposa.

            - Mas como é que eu ia adivinhar que minha mulher ia pegar meu telefone?

            - Você tá é ficando gagá. E burro. Como você foi largar o telefone ligado enquanto dormia?

            - Eu esqueci... Dei bobeira...

Depois, mais calmos, ele disse:

            - Perdoa minha traição?

            - De que traição você está falando? Com a sua mulher ou com a segunda amante?

E respondeu baixinho, com cara de cachorro pidão:

- É que Mozinho me deixa doido.

Ela não aguentou a cara dele e caíram na risada.

Ele acabou dormindo por ali mesmo.

No dia seguinte, a primeira amante acordou disposta e decidida a conversar com a esposa porque, afinal, ela também tinha interesse em resolver logo o assunto. Tinha um filho para criar e não podia ficar no prejuízo.

Viajou para Marataízes e quando chegou, a esposa já tinha tomado suas próprias providências. Contara o caso para a família e dois de seus irmãos já estavam a caminho para achar Seu Osmar para dar-lhe um cacete e depois trazê-lo de volta.

As duas mulheres se encontraram, discutiram e brigaram, ficaram com raiva, choraram, soluçaram, mas, talvez por causa da diferença da idade delas com a da segunda amante, aconteceu o inusitado: Elas se entenderam e firmaram uma aliança contra Mozinho. É, a tal de Mozinho era a culpada pela desgraça da família, concluíram.

A maturidade contra a juventude.

Rapidamente, entraram em contato com os irmãos que haviam partido para buscar o traidor e informaram que haviam decidido por uma alteração nos planos iniciais. Agora, quem tinha que levar a surra era a outra amante, a mais nova.

Mas até hoje não conseguiram porque o Seu Osmar tratou logo de esconder Mozinho quando soube da intenção das duas.

Depois desse dia, a esposa e a primeira amante tornaram-se amigas e o caso foi abafado. Mas o Seu Osmar continua até hoje frequentando as duas. E o melhor, o filho mais novo foi aceito na família: Agora, mesmo em casas separadas, a família é composta de duas esposas e três filhos.

Tudo acabou bem, mas ninguém toca no assunto. Elas sabem quando o Seu Osmar está na casa de cada uma, mas fingem não saber. O silêncio delas é a prova da cumplicidade que estabeleceram.
A vida entrou na normalidade.


Dia desses, quando eu conheci o Seu Osmar, ele me falou que sua vida está muito boa, mas por causa da jura contra Mozinho, até hoje ele a mantém escondida numa casa que alugou, e ainda faz uma espécie de previdência privada para ela, depositando todo mês uma quantia na sua Caderneta de Poupança.

            - Vai que aquelas duas malucas resolvem me matar... Mozinho ia ficar desamparada, né?