O padre e o sabiá

 
Saindo de um restaurante onde havia almoçado, aguardava em pé na calçada enquanto minha mulher olhava umas sandálias dentro de uma loja. Foi quando ouvi uns fiapos de uma animada conversa entre uns sujeitos grisalhos que estavam ali por perto. Pelo aspecto e pelas roupas, parecia que voltavam da praia.

Diziam coisas e davam risadas. Foi quando um deles perguntou aos demais “Alguém aí já se confessou a um padre?”.

Nem esperou a resposta, já foi entabulando: - Eu já, uma vez só na vida, e me dei mal.

- O que houve? - perguntaram.

- Na época de minha adolescência, havia uma moça na minha cidade que gostava muito de passarinho. Eu era maluco por ela. Vivia em volta dela, mas ela se fazia de difícil o tempo todo, não queria saber de papo comigo.

- Então tive a idéia de capturar um canarinho e dar para ela. E foi o que fiz. A partir daí começamos a nos aproximar mais e começamos o namoro.

- E o que tem o confessionário com essa história?

- Calma que eu chego lá – disse - e continou:

- Mas o que eu queria mesmo era transar com ela. Eu tentava, ela se esquivava. Só queria saber de beijinhos. Era um tal de passear de mãos dadas que me dava nos nervos. Ela continuava firme: Não me dava oportunidade de jeito nenhum.

- Um dia, já de saco cheio, eu reclamei: Já havia um tempão que nós estávamos juntos e nada. Minha lamentação tinha um tom de chantagem. Dizia que, apesar de gostar muito, se ela não resolvesse logo, eu ia embora, e outras coisas desse tipo.

- Mas e o padre nessa história? – insistiram.

- Pois é. Vai daí que ela acabou dizendo que topava desde que eu pegasse para ela um sabiá. Mas tinha que ser um que vivia perto de sua casa. Não podia ser outro. Tinha que ser aquele e pronto.

- Não tive dúvidas: Aquele sabiá ia ser pego de qualquer maneira. Preparei um alçapão com alpiste e me coloquei na tocaia.

- Demorou muito. E parece que a moça se divertia com isso. Dias e dias esperando ele chegar perto, buscando entender sua rotina, mas estava difícil. Diariamente, depois da escola, ficava na campana.

- Até que um dia, o bicho chegou mais perto, pulou em volta, sassaricou e acabou entrando na arapuca.

- Soltei um grito de satisfação. Nem tanto pela expectativa de meu intento com a moça, mas pela conquista depois de vários dias de paciente espreita.

- Levei o penoso para a moça. Ela não teria mais como negar nada para mim. Assim que entrei no seu quintal e a avistei, já fui anunciando a conquista.

- Entreguei o sabiá, mas como a empregada da casa estava por perto, disfarçadamente, eu disse que estava pagando a prenda solicitada pelo prêmio prometido.

- Tá bom, mas primeiro, temos que colocá-lo numa gaiola, - ela disse.

- E foi aí que começou a segunda fase da enrolação. Depois da gaiola, disse que era preciso esperar para ver se não ia morrer por causa da prisão, depois disse que ele estava meio adoentado, em seguida ela própria caiu de cama, noutro dia havia a mãe que não largava do pé dela, depois, e depois, e depois sempre histórias para fugir do trato.

- Daí você não conseguiu o que queria?

- Então, a coisa foi indo até que ela disse que o sabiá havia fugido, mas que achava que tinha sido sua mãe que o havia soltado, e que não havia mais trato porque não havia mais passarinho.

- Lascou...

- Fiquei passado, aborrecido, zangado porque percebi somente naquele momento que ela havia me enganado o tempo todo. Ela tinha feito aquilo de caso pensado. Tinha feito hora com a minha cara. Rompi o namoro.

- Com raiva, começei a pensar numa vingança. Passado um tempo, resolvi sumir com o canário que havia pego para ela antes do sabiá.

- Isso mesmo que ia fazer. Num dia à tarde, enquanto todos estavam dentro de casa, pulei o muro e rapidamente peguei a gaiola onde estava o canarinho. Longe dali, no mato, eu o soltei. Ele estava assustado e desacostumado com a liberdade. Ficou desorientado uns instantes, mas logo sumiu de minhas vistas. Completei minha vingança quebrando a goiola. Voltei satisfeito para casa.

- Não passou muito tempo, a dor na consciência começou aparecer quando soube que a moça estava triste com o sumiço do canário. Soube também, através de colegas de escola, que ela achava que havia sido eu o responsável pelo sumiço do passarinho.

- Acabei encontrando com ela no pátio da escola e tocamos no assunto. Ela brigou comigo porque tinha certeza que eu havia matado o bichinho. Eu não desmenti e nem disse o que fizera. Fiquei calado. Eu ainda gostava dela.

- Foi aí que ela disse em tom severo: "Ou você vai se confessar com o padre no domingo e conta para ele que matou o passarinho ou eu nunca mais falo contigo".

- E ainda completou quase num sussurro: "... e aquilo que você tanto quer, néris di pitibiriba. Bau-bau. Tá fechado para nunca mais".

- Surpreso com a entonação de suas palavras, como uma verdadeira revelação, dei um sorriso de satisfação só em pensar nas possibilidades.

- Mas logo em seguida caí na realidade: Tinha de contar ao padre que havia agido por vingança por não ter conseguido os prazeres libidinosos de certa moça do lugar. Mas não podia dizer o nome dela, é claro, porque, afinal de contas, ela era conhecida por todos e não podia cair na boca do povo, mesmo que esse povo quizesse dizer apenas o padre. "Não ia ficar bem para ela", conclui.

- E assim, com a promessa renovada, não tive dúvidas, contei tudo para o padre no domingo seguinte, mentindo que havia matado o canarinho, como havia mandado a moça.

- Foi a pior coisa que fiz na minha vida. Recebi a penitência do padre e a cumpri todinha. Além das tantas Ave-Marias e tantos Pai-Nossos, fui obrigado a assistir à missa aos domingos por longos três meses. Não foi fácil.

- Aí você finalmente conseguiu ...

- Que nada, consegui nada. Alegando que eu ainda estava em estado de penitência, e sendo ela a motivação e o objeto do pecado, eu tinha de esperar até a absolvição final. Novamente fui enrolado.

- Mas o pior de tudo, é que a história caiu mesmo na boca do povo. Minha mãe soube do acontecido e falou para o meu pai. Foi um escândalo no lugar. A família da moça se fechou um tempão em casa e se afastou do convívio com as pessoas, até que um dia eles se mudaram da cidade.

- Até hoje não sei como as pessoas ficaram sabendo do caso, não consegui nada com a moça, não confio em padre e tenho raiva de passarinho.

Verão em Guarapari

 
Céu, tão grande é o céu.

E bandos de nuvens que passam ligeiras, pra onde elas vão, ah, eu não sei, não sei.

Tom Jobim e Aloysio de Oliveira

As praias de Guarapari são lindas e é uma delícia passear em sua orla. Nessa época, a cidade recebe uma brisa gostosa e faz exaltar nas pessoas um sentimento de bem-estar, como um convite para contemplar sua bela natureza e conviver com pessoas. É assim que eu me sinto lá no verão.

Ontem à noite estive no Kibe Lanches, bem no centro da cidade, e comi as especialidades da gastronomia árabe, acompanhadas de cerveja gelada. Aliás, cervejas, porque não dá pra beber só umazinha nesse calor. Tem que ser um monte. Estava muito bom.

Em companhia de minha mulher e de casais amigos, o assunto na mesa girou em torno da Guarapari dos dias atuais em comparação com o que ela era no tempo de nossa juventude. Como todos os presentes eram de faixa etária parecida, o papo fluiu numa descontração só possível entre amigos da vida inteira: Boas lembranças, pessoas queridas, banhos de mar, moquecas, brincadeiras e risadas.

Já fomos ao Kibe Lanches inúmeras vezes, em todas as épocas do ano. Nunca foi preciso pegar senha para ser atendido. Mas ontem foi necessário. É o sinal dos tempos.

Jorge Chamon, o proprietário, apareceu, e como sempre, cumprimentou amigavelmente a todos e foi efusivamente festejado por alguns mais entusiasmados no lugar.

Esperamos com paciência chegar nossa vez e enquanto isso, bebemos vários copos da loura, em pé mesmo e encostados nos carros estacionados na rua, e um tempão depois, fomos chamados pelo garçom. Nessa altura a animação era geral.

A grande novidade da noite foi quando Juninho anunciou que ia pintar sua vasta cabeleira branca. Ele disse que queria fazer isso porque se sentiu envelhecido depois que uma empregada no supermercado disse que “... a fila para idoso é outra”.

- Pô, eu não sou idoso! - disse protestando, - ela ficou olhando pra mim com ar meio incrédulo, meio sem graça, por ter cometido a gafe.

O papo continuou descontraído pela noite.

No dia seguinte, na praia, apareceu ele todo orgulhoso com suas madeixas renovadas, incluindo as sombrancelhas em acaju. Acompanhado de Beth, sua mulher, perguntava a todos se tinham gostado do novo visual. Era uma alegria só quando as pessoas elogiavam. Comentou que ia voltar ao supermercado e passar em frente da moça que o tinha chamado de velho para se mostrar e provar que não era idoso.

Mais tarde, na hora do almoço, Roberto contou uma história que ele jura ter acontecido de verdade, mas tenho cá minhas dúvidas. Serviu foi para todos darem boas risadas. Disse ele que numa tarde de sábado, no início dos anos 1960, um sujeito saiu do mercado da Vila Rubim, em Vitória, com uma sacola cheia de compras e um pato ainda vivo. Passando em frente ao cinema Santa Cecília, bem antes do tempo em que foi transformado em templo religioso, resolveu entrar. Como o porteiro não permitiu o seu acesso por causa do bicho, ele resolveu enfiá-lo dentro da calça. Abotoou seu paletó (nessa época todo mundo usava peletó) para disfarçar, comprou o ingresso e entrou para assistir La Dolce Vita, de Federico Fellini.

Durante a exibição, enquanto Marcello Mastroianni e Sylvia Rank desempenhavam maravilhosamente seus papéis através dos cartões postais de Roma, o bicho começou a ficar muito agitado. Para acalmá-lo, o sujeito abriu a braguilha da calça, permitindo ao pato mexer a cabeça e respirar livremente. Como estava comendo pipoca, acabou alimentando o penoso ali mesmo, naquela situação.

Nessa altura, o pessoal ao seu lado já estava alvoroçado com a inusitada cena. Ele então se dirigiu a uma mulher que estava perto:

- A senhora nunca viu isso?

Ao que ela respondeu prontamente:

- Bem, moço, ver eu já vi, mas nunca comendo pipoca...

A gargalhada foi geral.

Coisas de Deus e coisas dos homens

 
A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma.

Ninguém dizia que eram suas as coisas que possuía, mas tudo entre eles era comum.

Atos dos Apóstolos 4-32.

O pastor falava para o seu rebanho durante o culto. O assunto tratado era sobre o que escreveu João, o evangelista, no capítulo 14: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim”.

Essas palavras despertaram a atenção de Sueli, uma mulher com seus quarenta e tantos anos, e fizeram com que fosse arrancada de seus pensamentos mais profundos naquele momento. Assistia ao culto sem participar dele.

Passava por dificuldades em casa: O dinheiro não era suficiente para todas as despesas cada vez maiores, tinha de apertar ainda mais os gastos; O marido, por anos e anos, hostilizava sua opção religiosa e a sua frequência à igreja, criticava sua ausência de casa durante os cultos; e os filhos que não davam sossego na vizinhança e na escola, vira e mexe, surgiam reclamações por causa de mau comportamento.

Passavam os minutos, o pastor continuava pregando e ela mais distante em seus devaneios: - Quanta coisa para pagar, meu Deus, e o dinheiro tão curto.

“Em verdade, em verdade vos digo: aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas...”, clamava o pastor.

- Mas como? Eu oro, eu creio... Mas é tão difícil, tudo é tão difícil para mim. Trabalho com afinco na obra da igreja, participo e contribuo com tudo. Quanto suor e sacrifício eu deixei aqui nesses bancos.

“E tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, vo-lo farei, para que o Pai seja glorificado no Filho”, continuava o pastor.

- Quantas vezes eu busquei, quantas vezes pedi, e até agora, o que tenho recebido é mais trabalho e sacrifício, desgosto e desânimo. A casa onde moro é alugada, ainda não pude comprar uma. Não tenho bens e nem conforto, ganho mal no meu trabalho.

“Qualquer coisa que me pedires em meu nome, vo-lo farei”, falava o pastor, exaltado.

- Já pedi tanto, já implorei, já chorei muito. Anos a fio passaram e minha vida não me trouxe alegria, até minha família está cada vez mais em desarmonia.

“Se me amais, guardareis os meus mandamentos”, quase gritava o pastor.

- Mas eu amo Jesus. Eu tenho certeza que Ele me ama.

O discurso do pastor ia chegando ao seu final ao mesmo tempo em que Sueli vinha se aproximando mais da realidade, emergindo de seus pensamentos de desânimo: - Ando reclamando muito e Deus sabe o que faz. Se minha vida está desse jeito, mas se eu quero que mude, então eu mesma devo me esforçar, trabalhar mais para sair dessa situação. É isso mesmo! Quero mudar tudo para resgatar a felicidade de viver junto com meu marido e meus filhos.

Inspirada e resoluta, ela retorna para casa com o firme propósito de realizar mudanças: Melhorar a qualidade de sua vida, tanto material quanto espiritual.

Ao passar pela porta da sala encontrou o marido emburrado demonstrando insatisfação por vê-la chegar àquela hora. Não falaram nada um para o outro.

Os filhos ainda não haviam chegado da rua.

Tudo normal, conforme era desde muito tempo.

Pela manhã, enquanto passava o café e punha a mesa, a manchete no jornal chamou sua atenção com denúncias de desvio de dinheiro na Igreja Cristã Maranata.

- Meu Deus! Como isso é possível?

Leu a reportagem avidamente e sua primeira reação foi de incredulidade. Não é possível, pensou, justo na minha igreja. Uma instituição sagrada e que cuida tanto em preservar sua imagem de seriedade. Um lugar que inspira tanta confiança a todos.

- Tanto que trabalhei e tanto que confiei, e agora leio que pessoas da cúpula da igreja são acusadas de desvio de dinheiro. Vinte e um milhões de reais, informou a Polícia Federal em análise preliminar, mas pode ser mais.

- A reportagem disse que parte do dinheiro roubado foi usada para comprar apartamentos no Brasil e no exterior, para pagamento de cartões de crédito e despesas pessoais do vice-presidente, do contador, de diáconos e pastores. Além disso, trouxeram de fora do país, por meios ilegais, material suficiente para montar uma emissora de televisão. Isso é contrabando. Isso não é correto.

Sueli chorou. Estava chocada.

No dia seguinte, triste, mas convencida que era mesmo verdade toda aquela sujeira, mas ainda com sentimentos que oscilavam entre a negação e a revolta, surgiram perguntas que se pregaram em sua mente: Por que pessoas em que ela havia confiado tanto tiveram a coragem de manchar de forma tão vil a Casa de Deus? O que foi feito com o dízimo que havia ofertado para a igreja, um dinheiro que fazia tanta falta para o conforto de sua família?

Não tinha respostas. Sentia apenas uma tristeza que inundava toda a sua alma.



Cena urbana

 
De frente para os carros, o sinal fechado, um sujeito faz malabarismo na esquina movimentada da cidade.

Quando uma pessoa estabelece o hábito de só se deslocar com o automóvel para fazer suas atividades diárias, corre o risco de não ver situações incomuns ou pitorescas pelos cantos da cidade.

Mas quando caminha e se deixa levar pelo fluxo nas vias é possível perceber detalhes que de dentro do carro não seria possível observar. É como andar como um turista dentro de sua própria cidade tentando descobrir coisas antes desconhecidas, ou tentando redescobrir a paisagem tantas vezes repassada. Perder-se pelas ruas, andar sem rumo definido e parar em algum boteco para um café ou uma água pode ser gratificante por causa de uma conversa com alguém, sentir um sabor diferente, ou um olhar mais atento a algum ângulo insuspeito na rua tantas vezes percorrida.

Observar aquela senhora apressada que atravessa uma rua se arriscando por entre carros, ou aquele sujeito com o semblante fechado sentado no banco do abrigo da parada de ônibus. Passar por trás do malabarista de sinal de trânsito e observar sua performance pelo lado contrário: o seu esforço, o suor na face sob o Sol e os detalhes da roupa nem sempre limpa e nem sempre bem costurada.

Um dia desses, por causa da escassez de vagas para estacionar, tive que parar meu carro bem distante do local onde tinha assuntos para resolver no centro da cidade. Andei a pé por várias quadras. Foi nessa ocasião que eu pude ver uma cena tipicamente urbana. Pela frequência com que deve se repetir nos aglomerados urbanos acredito até ter se tornado banal: A invisibilidade das pessoas no meio da multidão.

Devia passar das oito e meia da manhã e eu andava sob uma marquise de um antigo edifício, desses que parecem estar lá desde sempre. Havia uma lanchonete, tive vontade de tomar um café. Cheguei próximo ao balcão e me atendeu um rapaz ainda com cara de sono. Havia três mesas no lugar ainda vazio naquela hora do dia. Meu café chegou e enquanto bebia, vi no outro lado da rua três policiais mantendo um grupo de pessoas, a maioria homens, encostados de frente para uma parede enquanto procediam a uma revista. Pelo aspecto deles inferi que se tratava de moradores de rua ou viciados em drogas. Ou ambas as coisas, vai saber. Havia uma viatura com luzes de emergência funcionando, e estava estacionada meio que atravessada com parte sobre a calçada e parte na rua, obrigando os motoristas a diminuir a velocidade naquele ponto e fazer o desvio.

Não fosse pelo incômodo causado no trânsito, pequeno, é verdade, se for levado em conta os grandes engarrafamentos a que está sujeita diariamente a cidade, ninguém teria sequer percebido que se tratava de uma operação policial.

Permaneci observando por instantes em busca de alguém que estivesse passando nas imediações e que percebesse a movimentação, mas ninguém viu ou reagiu. Daí, pensei que aquele fato, tão corriqueiro, era como algo pertencente à própria paisagem urbana, algo como uma estátua numa praça pública, ou uma árvore, mesmo que florida, numa calçada: Ninguém vê mais. É a invisibilidade das pessoas no mundo.

Faz algum tempo eu soube de uma dissertação de mestrado em São Paulo sobre esse assunto: Fernando Braga da Costa, um professor que passou anos executando diariamente atividades de gari nas vias da USP ao mesmo tempo em que ministrava normalmente suas aulas naquele campus. Durante todo o tempo ele permaneceu invisível para os seus conhecidos. Ninguém o viu. “Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível”.

Por que será que pessoas não veem pessoas?

Será que cada um se considera tão importante ou que seus assuntos e problemas são tão mais urgentes que o impede de enxergar que há outras pessoas à sua frente?

Segundo o professor Fernando, a resposta para essas questões é explicada pela função social de cada um, ou seja, pessoas com cargos braçais e de menor preparação acadêmica não são vistas por outras pessoas.

É. Pode ser. Mas é chocante viver a experiência, mesmo que do outro lado da cena, como um mero expectador ocasional, e também invisível.

Justo e perfeito

 
Oh! Quam bonum et jucundum habitare fratres in unum.

S. 133

A tradição maçônica é muito antiga e há registro de fatos documentados a centenas de anos. Para além daquilo que possui evidências históricas, o que se diz e o que se vê é pura especulação. E é muita coisa recentemente publicada, às vezes chegando à beira do fantástico. Há quem diga que a Maçonaria surgiu na época de Salomão, e há aqueles que a levam até Adão e Eva. Muitos falam em conspiração, domínio do mundo, domínio do mal, manipulação de pessoas, pactos tenebrosos, e, no entanto, o que ela quer é tão somente trabalhar em silêncio.

A realidade é que a Maçonaria é uma instituição que não nasceu pronta. O que houve foi uma evolução a partir das guildas dos trabalhadores na Idade Média, especialmente a dos pedreiros. Concorreu para o surgimento da Ordem uma sucessão de fatos associados a determinadas situações históricas, espalhadas em épocas diversas ao longo de muitos anos. Muitos homens participaram nesta obra.

Numa sociedade estática como era a vivida na Europa durante a Idade Média, onde a mobilidade, tanto vertical quanto horizontal não existia, até para viajar de um lugar para outro era difícil, senão impossível. As pessoas não se movimentavam, as notícias não eram transmitidas senão conforme os interesses do grupo que estava no poder.

De uma forma geral, só podiam se deslocar de um lugar para outro os membros da nobreza, os membros do clero e os construtores. Os primeiros porque detinham o poder numa Europa estabelecida em feudos, carente de recursos de todo tipo e onde mantinham o povo em estado de verdadeira escravidão sob a condição de vassalagem. Os pedreiros, por seu lado, podiam se mexer de um lado a outro porque conheciam as técnicas da construção. Eles guardavam o conhecimento das construções como um segredo supremo, só o passando de membro a membro no interior de sua lodge, impedindo, assim, que qualquer um se aventurasse em construir qualquer coisa que fosse. Eles sabiam construir e, portanto, eram chamados para essas atividades toda vez que surgia a necessidade de um novo castelo, uma nova igreja ou uma nova muralha.

É bom lembrar que na era medieval, o castelo cumpria basicamente três papéis: Residência do senhor feudal (o dono do pedaço), fortificação para defesa contra invasões e saques inimigos, e proteção para a população que ali dentro se amontoava e servia ao senhor do castelo.

E assim funcionava uma sociedade que não proporcionava a menor possibilidade de mobilidade para ninguém. O pobre nascia pobre e morria pobre, e no máximo, podia se casar com outro pobre, e manter tudo na miséria. Não havia instrução acadêmica e ninguém sabia ler e escrever, exceto aqueles destinados à carreira religiosa (aqui, leia-se Igreja Católica). Os ricos eram os senhores das terras, e todo aquele que nela vivia, trabalhava primeiro para o senhor, e depois, se sobrasse algo, para o seu próprio sustento e o da sua família. Terras não eram vendidas ou comercializadas, apenas tomadas à força pela guerra ou ganhas por herança.

A partir do instante em que as cidades começaram a surgir, e junto delas, uma nova classe social burguesa, iniciou-se a transformação definitiva daquele modo de vida que havia perdurado tanto tempo. Com o advento do Mercantilismo, a Europa se transformou definitivamente, e possibilitou o início da mobilidade das classes sociais.

Os pedreiros, livres para transitarem em função de seus conhecimentos e de suas habilidades, tinham uma missão mais que nobre naqueles tempos de trevas: Além de construir, eram os mensageiros, os disseminadores das notícias e das idéias. Com o passar do tempo, pessoas, aquelas do tipo pensantes, questionadoras ou insatisfeitas com o status quo predominante, aos poucos foram se infiltrando por entre as guildas dos pedreiros para possibilitar, eles também, circular por entre as diversas cidades e países, e com isso, conhecer outras fontes de informação, além deles próprios levarem suas próprias notícias e informações.

E foi nesse contexto histórico que Maçonaria estabelece a evolução de seus conceitos, seus rituais e suas práticas. Finalmente, ela se organiza oficialmente na Inglaterra em 1722, quando algumas associações de pedreiros livres, ou maçons em sua denominação francesa, dentro de suas lodge, resolveram se unir sob uma Grande Loja. Chamaram essa associação de Grande Loja da Inglaterra. Foi demorado, mas foi simples assim.

A partir daí, sempre envolta em cuidados e muita discrição, a Maçonaria, como uma instituição formalmente estabelecida, se difundiu entre as pessoas e entre as nações. Inicialmente pela Europa e logo em seguida pelo mundo todo.

A Maçonaria teve como um dos seus primeiros codificadores o pastor presbiteriano James Anderson que compilou e publicou, em 1723, a 1ª Constituição Maçônica.

O maçom Albert Galletin Mackey publicou nesta época os Landmarks Maçônicos, um conjunto de 25 preceitos imutáveis da Ordem Maçônica. São as leis básicas a que todo maçom está sujeito.

Orientando seus seguidores a uma conduta reta, a Maçonaria sempre cobrou o cumprimento de seus estatutos e estabalece um alto preço àqueles que se desviam de suas obrigações. O que se espera de um maçom é antes de tudo uma atitude correta perante seus deveres, tanto no papel de cidadão, tanto como um pai de família, como para com a própria Instituição. Isso deve ser seguido à risca, sem titubeios ou incertezas. Ser correto, justo e honesto não é apenas virtude, mas, sobretudo obrigação. Deve fazer parte da própria identidade de cada maçom.

Simbolicamente, o maçom deve se posicionar no centro de um círculo, e este círculo deve se deslocar sempre entre duas retas paralelas. Não há possibilidade de desvios.

E assim, o que se lê nos rituais da Ordem é a própria Perfeição, é o estado da arte recomendado na maneira de ser e agir para cada membro da Maçonaria.

É recomendada a todos os maçons a investigação da verdade sempre, assim como a tolerância em diversos aspectos das atividades humanas, tais como o que diz respeito à opinião pessoal dos indivíduos, incluindo assuntos como religião e fé. Respeito à família e a crença em um Deus, aquele que é próprio da concepção de cada um.

É esperado também do maçom uma atitude pessoal que leve as pessoas que estão a sua volta a reconhecer nele um homem digno e respeitoso, não precisando ele próprio se propagandear como homem bom.

Sendo assim e agindo assim, justo e perfeito, o maçom seguirá firme no cumprimento de sua mais grandiosa missão de vida que é contribuir para tornar mais feliz a humanidade.