Vitória mudou

Cidade Sol, com o céu sempre azul
Tu és um sonho de luz norte a sul
Meu coração te namora e te quer
Tu és Vitória um sorriso de mulher.
Pedro Caetano.

Dizem os antigos que em Vitória o inverno chegava duas ou três vezes por ano. É quando batia o vento Sul. O resto do tempo era um clima gostoso, nem frio nem quente, delícia de viver, bom para tormar a fresca nas noites de calmaria, conversar com os vizinhos na calçada e dormir de janela aberta. Era assim desde sempre.

Eu nasci na maternidade do Dr. Arnaldo, na Praia do Canto, que hoje deu lugar ao Shopping Boulevar da Praia, num tempo em que tinha bonde nas ruas e cinema nos bairros: América, De Lourdes e o Trianon em Jucutuquara. Tempo de ruas vazias de carros que até dava para jogar pelada com bola de meia, descalço, em plena Paulino Müller. Quando vinha um ônibus, sempre da linha São Torquato-Jucutuquara, tinha tempo de parar o jogo para logo em seguida recomeçar sem sustos e sem perigo.

Naquela época, gente bacana de Vitória viajava para para o Rio de Janeiro para comprar roupas e acessórios da moda. Época em que era chique circular pelas boutiques da Rua Sete, recém-fechada ao trânsito de automóveis.

Eu me lembro do antigo mercado da Vila Rubim antes da grande reforma, com urubus sobre os montes de lixo e voando em círculos sobre as barracas, ruelas e becos, coisa típica de uma cidade atrasada como, aliás, anos depois declarou aborrecido o craque de bola Paulo Cezar Caju:

- Nunca mais volto para jogar nesta província.

Foi embora e foi tarde. Pelo que sei, nunca mais voltou. Foi melhor assim.

Vitória tinha o Blitz Bar, lugar da boemia, refúgio daqueles que não tinham mais para onde ir depois de fechados os botecos da cidade. Era lá que se dava continuidade à bebedeira. Ou se recuperava dela com o inesquecível caldo verde servido em cumbucas fumegantes e acompanhado de torradas de pão francês – verdadeiro sopro de vida na alma depois de tanta cana.

Ao amanhecer, o café da manhã era no Bar Santos.

Os puteiros, ah! Os puteiros! – se espalhavam pela cidade: Bar Rock em Jucutuquara, Motel Veneza em Jardim da Penha, Motel Resende, da famosa Aurora Gorda, em Jardim Camburi, e tantos outros. Depois, todos foram para Carapebus. Lá, a Boate Atlântica era o destaque.

Hoje, a cidade é diferente de como era, está mais bonita, urbanizada; tudo mudou, cresceu e se modernizou, mas continua igual. Lugares, ruas, praias, bares, puteiros ainda existem, é claro, e vão continuar existindo.

Só o calor está exagerado, como são exageradas as chuvaradas que quando caem provocam muito sofrimento na população. Como é exagerada a quantidade de gente que povoa essa terra. Como é que cabe tanta gente numa ilha tão pequena? Tudo mudou mesmo.

Vitória continua espremida entre os morros e o mar, entupida de gente e de carros, tentando parecer cidade grande, mas com ares de cidade pequena, ares de província, como a sinto em meu coração.

Vitória continua linda como sempre foi. Cada vez mais.

O vendedor de quebra-queixo

Tem!
Di-Ca-Ta-Ga-La-Cu-Tem
Di-Ca-Ta-Ga-La-Cu-Tem
Di-Ca-Ta-Ga-La-Cu-Tem
Di-Ca-Ta-Ga-La-Cu-Tem
Tem-Tem-Tem-Temmmm!
Estava lendo o jornal em minha sala, nono andar, quando ouvi ao longe o tilintar inconfundível do vendedor de quebra-queixo. Mudei toda a atenção da leitura e disparei as lembranças para Jucutuquara, o bairro onde morei na infância.

O baticum metálico, o mesmo do passado, alvoroçava a garotada e soava aos ouvidos como música. Bastava ouvi-la e todas as brincadeiras cessavam. Jogo de ferrinho no chão batido, bolinhas de gude nas calçadas sem pavimento, caçar passarinho com estilingue e bolinhas de barro cozidas e as pipas-estrela em cima da Pedra do Bode.

O vendedor não parava de bater o pino de aço no aro de rolimã até que nós nos aproximássemos para comprar o doce feito de coco e açúcar. Receita simples e antiga que às vezes levava um pouco de sumo de limão, dando um sabor especial.

Cada um deles tinha seu próprio timbre e com sutis diferenças no ritmo e no toque, mas geralmente variavam sobre o mesmo tema:
                    Dem!
                    Di-Ga-Di-Ga-La-Gu-Dem
                    Di-Ga-Di-Ga-La-Gu-Dem
                    Di-Ga-Di-Ga-La-Gu-Dem 
                    Di-Ga-Di-Ga-La-Gu-Dem
                    Dem-Dem-Dem-Demmmm!

Essa é uma das inúmeras passagens que povoam minha memória. As brincadeiras naquele tempo eram sempre pelas ruas próximas à Avenida Paulino Müller, numa época em que ainda tinha o bonde circulando paralelo ao valão aberto, ou subir nos morros em torno do bairro. Ficar dentro de casa só quando chovia.

Certo dia, após cortar o cabelo, minha avó Malvina me obrigou a retornar à barbearia porque achava que ainda estava comprido. Obedeci e fui. Novamente ela achou que não estava bom. Obedeci e retornei, mas dessa vez, mandei o barbeiro passar a máquina zero. Tomei uma surra com varinha de oitizeiro.

- É para você aprender a deixar de ser debochado.

Era um tempo em que os pais batiam nos filhos e eles cresciam fortes e normais. Não precisava de psicólogo para tratar os traumas e nem prisão para punir torturadores de menor.

Ganhei o apelido de Careca azul.

            - Careca azul!

Quando alguém me chamava assim, eu me zangava. Saía em disparada tentando achar quem estava me xingando, mas na maioria das vezes não encontrava ninguém, o gaiato se escondia. O tormento durou até o cabelo crescer novamente.

Um dia, um vendedor de quebra-queixo mandou o filho fazer o seu trabalho. Era um garoto do mesmo tope que os da turma. Não sei se por orientação de alguém da turma ou se por iniciativa própria, ao me entregar a minha porção do doce, disse:

            - Tá aí a seu quebra-queixo, careca azul.

Todos da turma começaram a dar risadas. Menos eu. Minha reação quase imediata foi amassar o quebra-queixo na cara do sujeito. Rolamos na poeira, aos murros. O tabuleiro do menino caiu e o vidro partiu. Sobrou quebra-queixo pra todo lado.

Entrou a turma do deixa disso e tudo acabou bem. Pelo menos até o dia seguinte quando o pai do garoto cobrou de minha avó o prejuízo.

Resultado: Outra surra e um castigo – permanecer em casa o dia todo estudando – que durou quase um mês.

Mas nunca deixei de comer quebra-queixo.

A vingança de Hécuba

A paz do mundo começa no coração de cada um.
Preceito Rosacruz.

Por que o homem é violento? Quais são as diferenças entre o comportamento do ser humano atual daquele que vivia no Egito há 6 mil anos ou daquele que estava na Roma de 2 mil anos atrás? E se for considerado o homem em seu nascedouro, por volta dos 70 mil ou 100 mil anos atrás?

Estas perguntas me incomodam por causa da violência tão comum e porque vejo as pessoas se agredindo diariamente em todos os lugares, todos os níveis, sob quaisquer pretextos. Crimes são cometidos a cada segundo, as mortes povoam diariamente as páginas dos jornais. O trânsito aleija e mata. Nações se enfrentam com armas, convivem com o ódio recíproco que atravessa gerações, as pessoas não se dão, a intolerância é crescente. Há aqueles que se matam.

Não há resposta simples e tampouco definitiva porque o homem é um ser complexo e se caracteriza por desempenhar diversos papéis simultâneos na sua existência.

A violência está disseminada em toda a sociedade e promove uma crescente desvalorização da vida, do bom convívio e da paz.

É triste. É nossa realidade.

Tentei saber o que os especialistas dizem a respeito. Busquei informações e descobri que nem mesmo os grandes pensadores convergem suas idéias sobre o tema. Dois deles, Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau, durante os séculos 17 e 18, tratam basicamente sobre o mesmo assunto, mas com abordagens diversas. O primeiro afirma que o homem é mau porque é motivado pela competição (em busca do lucro), a desconfiança (em busca da segurança) e pela glória (em busca da reputação), enquanto o segundo diz que o homem é bom por natureza e que é a sociedade que o corrompe.

Além destes, há outros tantos que também explicam o fenômeno e na maioria das vezes, o que pensam se entrelaça e se complementa, mas nunca propõem solução eficaz para o problema. Todos estão certos em suas conclusões, mas permanece a realidade: A violência não some e nem ao menos diminui ao longo da história da humanidade.

Lembrei que veicula por todo o Brasil na atualidade uma campanha publicitária, cujo título é Conte até 10, cujo objetivo é diminuir a violência na sociedade. São várias peças em várias mídias que orientam o cidadão manter a calma em situações de raiva para evitar o confronto violento. Tudo muito bem, não fossem justamente os protagonistas contratados para veicular a mensagem: Famosos lutadores de MMA (Mixed Martial Arts), esporte violento ao extremo, cuja meta é, segundo o jargão corrente, finalizar o adversário. O que é que significa mesmo finalizar?

Mas, reclamar do que? A quem?

O que pode se esperar de um mundo onde matança pública de boi é considerada esporte nacional, facções que não aceitam a religião de outras pessoas explode tudo e a todos ao redor, onde o escore nos jogos de computador é contado pelo número de pessoas abatidas?

Talvez seja útil, na situação como a que vivemos hoje, refletir sobre a tragédia de Eurípedes, Hécuba, que descreve a violência contra inocentes. Segundo o narrador grego, Hécuba, mulher de Príamo, último rei de Tróia, foi escravizada durante a guerra contra a Trácia e teve seu filho Polidoro e sua filha Polixena mortos por causas menores. Com a ajuda de outros cativos, Hécuba vingou a morte dos filhos, matando os dois filhos do rei da Trácia, Polimister, e em seguida, cegou-o.

Como escrava e sem esperanças, Hécuba arquitetou sua vingança com práticas de extrema violência, numa demonstração de ausência de racionalidade, aliás, uma típica reação da natureza humana. A metáfora discutida na tragédia é a escolha do mal, em detrimento do bem, causada pela desesperança de Hécuba.

E assim como comecei com uma pergunta, termino o texto com outra: Onde vamos chegar se a violência humana não cessar? Ainda há esperança de um mundo em paz?

Viva Rubem Braga!

por Giovanni Angius, em 11/1/2013.

Há um grande vento frio cavalgando as ondas, mas o céu está limpo e o sol muito claro.

Duas aves dançam sobre as espumas assanhadas.

As cigarras não cantam mais.

Talvez tenha acabado o verão.

Rubem Braga.

Se ainda estivesse conosco, seria um velhinho, bem velhinho, e completaria amanhã exatamente 100 anos de vida. Refiro-me a Rubem Braga, o cronista capixaba considerado um dos maiores do Brasil. Para mim, é o melhor de todos. Da sua pena surgiram muito mais que crônicas, o tipo de literatura que envelhece com o passar dos dias, na mesma proporção em que são esquecidos os fatos ou notícias que a geraram. A sua crônica carregava (melhor dizendo, carrega) uma sutil poesia que possui a capacidade de perenizar suas idéias ao longo do tempo, eternizando o preciso instante em que veio à luz do mundo. O instante mágico da criação da arte, antes de se revelar no meio físico onde ela se materializa, sobre a folha de papel em branco. Ele era da época da máquina de escrever.

Nascido numa brava terra, berço de tanta gente importante no mundo das artes, um dia disse que, mesmo com ordens expressas do Todo Poderoso que o proibissem entrar no céu, é provável que, à porta, São Pedro titubeasse em cumpri-las ao ser informado que ele era de Cachoeiro de Itapemirim.

Eu o considero como um farol para onde volto o olhar sempre que me faltam referências ao escrever sobre as coisas que eu vejo no mundo. É como um modelo por onde busco me orientar, um caminho antes trilhado e que agora é mais fácil seguir porque a trilha já foi aberta. Com elegância, mas bem próximo da linguagem comum, sem rebuscamentos, ele estabeleceu um estilo que o colocou em destaque na grande galeria dos escritores brasileiros. Uma vez, ele disse que sempre escrevia para ser publicado no dia seguinte, como o marido que tem que dormir com a esposa todo dia: “pode estar achando gostoso, mas é uma obrigação”. Era seu trabalho, afinal. Tinha rotinas e obrigações a serem cumpridas. Compromisso em entregar o texto na hora certa. Para grande parte das pessoas, escrever uma frase por dia é como romper pedreiras a marreta, uma tarefa fatigante. Agora imagine escrever uma crônica todos os dias, durante anos, sempre de altíssima qualidade, isso sim é um trabalho imenso.

E foi assim que se tornou grande e proporcionou aos seus leitores momentos de deleite com sua obra, inspirando tanta gente interessada no ofício de escrever sobre o cotidiano. Em seu primeiro livro (O Conde e o Passarinho), aos 22 anos, já alertava ao mundo e para quem o lesse que não tinha pretensão de ser conde, antes, orientava sua vida à introspecção, gostava da solidão. Coisas de artista. Melhor dizendo, manias de poeta.

Amanhã e por mais alguns dias, por todo o Brasil, serão publicadas notícias sobre o centenário de nascimento do Velho Mestre. Será uma bela oportunidade para relembrar sua vida e sua obra, trazer aos olhos daqueles que pouco leem, uma arte tão finamente elaborada e de tão prazerosa leitura. Vai ser mostrado que o Rubem, humano, já não está aqui, mas o poeta, este vive vivíssimo.

Pela força que possui o seu texto, Rubem Braga há de viver eternamente, sobreviverá ultrapassando as dimensões físicas do tempo, numa perpétua presença na alma daqueles que o sabem ou o virem a saber.

- Viva Rubem Braga, nosso cronista maior!

- Viva!
 

A falta que a chuva faz

 
O Sol muito quente e a tarde abafada, sem vento, compunham o ambiente perfeito para os etéreis habitantes da praia, os seres privilegiados que a frequentam e permitem expor seus corpos sobre as areias, nos bares da orla ou ao longo do calçadão. Gente quase nua praticando o grande ofício do ócio de se torrar no calor do verão. E eu, na avenida, com uma inveja danada, me sentindo como um pedaço de carne assada no bafo da churrasqueira do carro que inventou de quebrar o ar condicionado justo hoje, que tenho um punhado de coisas para fazer na rua: Cartório, banco e supermercado (Êta programinha ruim!).

Tento minimizar o desconforto levando o pensamento para longe, mas é difícil. Bom mesmo seria também ficar à toa, mas numa sombra bem ampla e refrescos gelados, porque Sol e calor, como hoje, não me agradam.

E foi vagando por esses suarentos pensamentos que me lembrei do problema, este sim, importante: O Brasil está à beira de um racionamento de energia elétrica porque os reservatórios das hidrelétricas estão a níveis muito baixos. A todo instante os noticiários informam que as usinas estão com suas represas cada vez mais vazias por causa da falta de chuva neste verão.

Apesar de possuir a maior bacia hidrográfica do mundo e de ter optado pela geração de energia elétrica através dela (uma decisão historicamente acertada), o Brasil é um país continental e seu consumo é crescente, muitas vezes acima do que é disponibilizado pelo sistema, o que ocasiona, atualmente, na relação consumo/geração um equilíbrio instável. Em passado recente já convivemos com racionamento de energia elétrica.

Num país aonde mais de 90% de sua energia elétrica é de origem hídrica e com restrições políticas e ambientais severas em relação aos projetos de usinas com reservatórios de acumulação, que possuem a capacidade de regular o fluxo de água nas turbinas geradoras, as usinas hidrelétricas a fio d’água são priorizadas, ainda que com polêmicas intermináveis e atrasos nas obras.

Ocorre que em épocas de seca, as usinas a fio d’água simplesmente diminuem sua geração justamente por falta de água. A solução é colocar em funcionamento as termo-elétricas que são tocadas a combustíveis fósseis, que por sua vez, contribuem para o aumento da poluição atmosférica. A conta fica mais cara e adivinha quem paga tudo? Ganha um doce quem acertar...

Sempre sob o mote da defesa do meio ambiente ou de interesses indígenas, as querelas sobre a construção de novas usinas hidrelétricas se arrastam nos meios políticos e acabam na Justiça. E esta, como é do conhecimento geral, contribui fortemente para que os atrasos sejam cada vez maiores. Os custos crescem e embotam aquele que deveria ser o verdadeiro caminho a ser trilhado, qual seja, o de prover o país com fontes de energia capazes de suprir suas necessidades e garantir a segurança para o país e para sua população.

E sabe o insólito neste contexto? A presidente Dilma, ou presidenta, como gosta de ser chamada, insiste em dizer que haverá redução das tarifas de energia elétrica na casa dos 20% para o próximo mês. O povão adorou a notícia. Mas, ao mesmo tempo, o seu Ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, informa que haverá aumento de cerca de 3% nestas mesmas contas por causa da entrada das térmicas em funcionamento. Um espanto. Em quem acreditar? Este é o Brasil...

Mas não há de ser nada porque no final, tudo há de se resolver nesse imenso país abençoado por Deus e bonito por natureza. E Guarapari é logo ali. No próximo sábado, estarei lá, se Deus quiser. Com falta d’água ou não.