Lua Azul

 
Blue moon, you saw me standing alone

Without a dream in my heart

Without a love of my own.

Lorenz Hart e Richard Rodgers

Uma e pouco da tarde, no trânsito lento de Carapina, na Serra, e retornando para o trabalho depois de conversar com o mecânico que está arrumando o meu Puma, ouvi o Sardenberg perguntando:

            - E aí, pessoal? É temperança ou pé na jaca?

Enquanto os ouvintes do programa na rádio CBN enviavam suas respostas, ele anunciou que hoje está acontecendo um fenômeno raro no céu: Hoje é dia de Lua Azul.

Lua Azul é a segunda lua cheia em um mesmo mês e ocorre uma vez a cada dois ou três anos. A expressão, Blue Moon, foi dada pelo Anuário Astronômico Americano lá pelo século 19. Conforme esclarecimento do locutor, a Lua não fica azul, não aumenta o seu brilho, não altera o seu tamanho. É apenas uma coincidência de calendário.

Mas é aí que entra a genialidade humana que encontra motivação para transformar um fenômeno físico em algo que afeta a existência do ser. Dizem os místicos e outros adeptos que a Lua Azul é uma Lua de Amor, uma época em que os seres viventes, se dada a devida atenção a ela, podem transformar suas vidas em níveis mais elevados de espiritualidade. Os rituais, as oferendas e os luais vão se multiplicar nesta noite por todos os recantos do planeta. Uma parcela importante da população mundial vai se concentrar em planos mais sublimes do convívio humano. Velas serão acesas, preces serão recitadas, haverá meditação, concentração, pedidos e promessas. Muitas pessoas vão se amar mais. Talvez o mundo se torne menos ruim.

Eu, pelo meu lado, às vezes até penso que poderia me transformar numa pessoa mais nobre, com pensamentos mais holísticos e harmoniosos entre o físico e o imaterial, menos egoísta, menos racional; Uma pessoa capaz de olhar para o meu semelhante de forma mais misericordiosa. Mas acabo concluindo, na boa, o que eu queria mesmo, além de ter mais amigos e mais convívio, era mais grana. E depois pensaria em melhorar qualquer coisa na vida e no espírito.

Daí me deu vontade de ligar para o Sardenberg e dar minha opinião:

- Pé na Jaca, com convicção! Até porque hoje é sexta-feira e estou com vontade de abrir uma garrafa de vinho e começar bem o meu fim de semana. Temperança? Nem pensar!

O Sardenberg haveria de dar uma boa risada sobre a minha opinião e teceria algum comentário. E eu estaria satisfeito com minha participação no seu programa de rádio.

Não liguei para ele, mas continuei ouvindo o programa. Interessantes as respostas das pessoas. Percebi que, cada um, ao seu próprio modo, justificava sua escolha relacionando-a sempre a uma situação de trabalho ou de família. Sempre algo exterior a si própria, nunca simplesmente afirmando sua vontade pessoal. Ninguém disse “Quero enfiar o pé na jaca porque quero ser feliz”.

Assim são as pessoas atribuindo a outrem a motivação de suas iniciativas.

O programa ia avançado quando foi dito que a Lua Azul vai acontecer outra vez em julho de 2015.

Logo pensei:

- Isso se o mundo não acabar antes, em 21 de dezembro deste ano, conforme previsão do calendário maia, tão insistentemente veiculada e alardeada nos documentários dos canais da TV a cabo.

            - Será?

Quem viver verá...
 

Uma festa de 2123 anos

 
 

Roberto aproveitou um convite do Arnaldo, um antigo amigo dos tempos do Colégio Estadual, no Forte São João, em Vitória, para passar uns dias em Gramado, Rio Grande do Sul, com a família.

Vida de turista, sem hora para nada, perambulou pelas atrações da cidade com a mulher e a filha até que, num daqueles restaurantes da rua coberta, entre um gole e outro de vinho, o amigo e sua esposa, Selma, apareceram. Depois de tantos anos, o encontro foi alegre. Muitas recordações. Almoçaram e beberam.

Aliás, beberam além da conta. Tudo ia bem até que que o Arnaldinho lascou o convite:

            - Tenho um tio que está aniversariando hoje. Vai ter uma festança na casa dele à noite. Vamos lá?

Tentou argumentar que não conhecia ninguém, seria um intruso na família, ficaria deslocado sem ter com quem conversar, mas não teve como escapar da enrascada. Aceitou o convite.

A mulher e a filha, mais que depressa, arrumaram uma desculpa: Havia uma atração na rua à noite. Não poderiam acompanhá-lo.

Estava só. E mal acompanhado.

            - Vai ser como a travessia de um deserto árido, escaldante e sem vida – pressentiu.

Depois ainda tentou minimizar para se consolar:

            - Esses gaúchos são festeiros. Vai que a festa é animada? Senão, no mínimo, terei o meu amigo para conversar.

            - Tomara - pensou conformado – Tem dias que tudo dá certo, e tem aqueles que a gente passa e depois tenta esquecer.

Na hora marcada, precisamente na hora marcada (Eles não esqueceram!), o casal de amigos estava no hall do hotel, esperando para levá-lo à festa.

Chegando, teve uma surpresa quando avistou várias pessoas, todas idosas, sentadas em cadeiras enfileiradas e encostadas nas paredes ao redor da sala. Ao centro, uma mesa onde estavam servidos os comes e bebes: Sonho com recheio de creme de padeiro e guaraná. Era o que havia. Explicando aos desavisados, sonho aqui são aqueles bolinhos fritos com recheio de creme de gema de ovo.

Ao entrar, todos se voltaram para ele em silêncio. Foi só aí que o seu amigo disse que a festa era para comemorar o aniversário de 100 anos do seu tio-avô.

            - Meu Deus, vai demorar uma vida para acabar! – sussurrou entre os dentes.

Após ser apresentado ao aniversariante, em particular e aos demais, no geral, as conversas foram retomadas, mas sem ele.

Sentiu-se um ser transparente, ninguém o via. Totalmente deslocado no ambiente, amargou horas na animadíssima festa.

Pensou em arrumar um pretexto para ir embora, mas não dava porque estava de carona e não se sentia com coragem para chamar um taxi.

Resignou-se e suportou. Para passar o tempo, fez um jogo mental constituído em atribuir uma idade para cada um dos velhotes presentes. Somou tudo e chegou à surpreendente marca de 2123 anos. Era muita experiência concentrada em pouquíssimos metros quadrados, mas, que festinha chata.

Finalmente, lá pelas tantas, Arnaldinho e sua mulher decidiram que era hora de irem embora.

            - Então – perguntou o amigo no carro durante o retorno para o hotel – gostou da turma?

            - Ah, sim, o pessoal é bem animado, não?

Silêncio. Roberto desconfiou que sua entonação havia denunciado o seu desagrado.

- Também, sujeito sem noção... – pensou.

Dormiu o sono dos justos, aliviado, porque havia passado pelo purgatório da chatice. Amanheceu leve e alegre.

- Família, vida nova, atrações novas. Vamos visitar uma vinícola no Vale dos Vinhedos e nada nos aborrecerá hoje.

Desceram para o café da manhã. De passagem para o refeitório, deram de cara com Arnaldinho no hall os aguardando. Eufórico foi logo dizendo:

            - Bom dia, gente! Hoje teremos um dia ótimo no sítio do meu cunhado, irmão da Selminha. Vamos lá?
 

Aipédi, aipódi, aifone

 


Domingo, mais ou menos uma e meia da tarde, a mulher passando o dia com sua turma de artesanato, os filhos cuidando de suas próprias vidas. Sozinho, fui almoçar no shopping.

Entrei num desses restaurantes de comida padronizada-pasteurizada, coloquei qualquer coisa no prato e fui para a balança pagar. Pedi um chope.

A praça de alimentação estava quase lotada, mas consegui uma mesa bem localizada, de tal modo que pude ver a maioria das pessoas no ambiente.

Almocei sem pressa. Bebi o meu chope. Bebi mais um. Estava melhor que a comida.

Olhando distraído ao redor percebi como tem gente com aparelhos do tipo smartphone. Impressionante, pensei. Todo mundo tem. Uns falando e outros digitando. Eu não tinha noção da quantidade de gente que usa essas maquininhas.

Uma senhora no canto direito falava reclamando algo com alguém do outro lado da linha, enquanto um rapaz ao seu lado a olhava com atenção.

Um adolescente digitava mensagens velozmente; Outro, ferozmente, estava numa luta memorável com um inimigo virtual. Acho que ganhou a guerra, a considerar o sorriso de satisfação que deu quando a musiquinha parou de tocar.

Mas, o que mais chamou minha atenção foi uma família à minha frente. Pai, mãe, duas filhas e cinco telefones em uso. Simultaneamente!

É verdade, tinha umas Coca-Colas e uns sanduíches sobre a mesa, mas quase abandonados. Mais importantes eram os aparelhinhos. Tá certo, de vez em quando alguém dava uma mordida ou um gole no refrigerante. Mas o que se via e ouvia mesmo era uma concentração absoluta nas telinhas e uns grunhidos emitidos por alguém do grupo reagindo contra algo que acontecera no aparelho. Essa era toda a comunicação que faziam entre si, e parece que é o que bastava entre eles.

Nada contra o avanço da tecnologia no mundo. Tecnologia que permite, em tese, promover a aproximação entre as pessoas, mas o que eu percebi foi o distanciamento exagerado entre os membros daquela família. Tão perto uns dos outros na mesa do restaurante e ao mesmo tempo tão distantes.

Foi uma cena patética, até meio triste. Tive receio de ser indiscreto de tanto que eu os observava. Porém, levando em conta como estavam entretidos e absortos em seus mundinhos, não sei se eles poderiam vir a me perceber os observando. Não houve um instante em que eles olhassem ao redor de onde estavam, ou mesmo um instante que se olhassem ou trocassem alguma palavra entre si.

É uma pena ver pais dispensarem a mais simples forma de comunicação com os seus filhos que consiste meramente conversar. Ao invés, se perdem em algo que, penso comigo, é uma perda de tempo. Sim, porque o tempo passa, e passa ligeiro. Daqui a pouco, as meninas terão se transformado em moças e os pais, envelhecidos, hoje, não terão garantias que fizeram a coisa certa.

Por outro lado, existe a constatação de que esta é a marcha do mundo, e não há como dela fugir, ou lutar contra. Seria a mesma história do herói combatendo moinhos de vento. É lamentável que as pessoas deixem o convívio de lado e passem a valorizar o relacionamento com as máquinas.

Lembrei-me do comercial de um carro que está passando na TV, onde um garotinho, no banco de trás, telefona para o pai ao volante, pedindo que pare num posto de gasolina porque precisa fazer xixi.

Terminado o almoço, permaneci ali à toa. O pessoal da mesa ao lado foi embora e continuei pensando na situação que presenciara.

Momentos depois, para não esquecer os detalhes, eu saquei também meu tablet para tomar algumas notas sobre o que vi, o que agora se transforma nessa crônica.

Meio sem graça, quase ao final do texto, percebi o quão furiosamente estava teclando. E não via nada à minha volta.

É cosi.

E agora, Brasil?



Os Jogos Olímpicos de Londres chegaram ao fim, e agora, usando uma metáfora esportiva, o bastão está nas mãos do Brasil.

Após uma belíssima festa de encerramento em Londres que confirmou o sucesso do maior evento poliesportivo do mundo, a partir de hoje, faltam pouco mais de 1400 dias para a cidade do Rio de Janeiro sediar o próximo espetáculo.

Os números que envolvem o empreendimento são fabulosos. Nada do que acontece ali é pouco. Durante os Jogos, circularam por Londres cerca de 4,5 milhões de turistas e foram realizados mais de seis mil exames antidoping.

Para o Rio de Janeiro são esperados mais de 10 mil atletas olímpicos, e numa consulta na internet, é possível descobrir rapidamente os detalhes, números e expectativas para 2016. Também aqui, como em Londres, tudo será elevado à enésima potência, e não haverá lugar para amadores. É coisa para profissional.

E é justamente aí que reside a preocupação de muita gente séria. Quem conhece minimamente sobre planejamento ou quem está acostumado como as coisas acontecem e são feitas no Brasil, sente arrepios na espinha só de pensar na possibilidade de ver, às portas de 2016, obras inacabadas e ouvir as desculpas e justificativas as mais esfarrapadas possíveis. Isto porque as notícias sobre as providências para o evento mostram que tem muita coisa atrasada, o que, conforme as condições normais de temperatura e pressão aqui em terras tupiniquins, será o mote para a roubalheira e a sacanagem de última hora: Empresas contratadas sem licitação a preços milionários, propinas rolando solto e políticos faturando em cima do povo.

Algum leitor aí já viu este filme antes? Alguém aí lembra o superfaturamento que aconteceu nos Jogos Pan-Americanos de 2007? Há informações que um orçamento inicial de R$400 milhões se transformou em R$5 bilhões no fechamento das contas. Alguém aí é ingênuo o bastante a ponto de acreditar que agora será diferente? Eu não acredito.

Será que o COI não conhece as malandragens, artimanhas e a corrupção que campeia alguns setores da gente bronzeada dessa terra?

Por outro lado, há a constatação que houve involução na conquista de medalhas por parte dos atletas brasileiros nas últimas três Olimpíadas, Grécia (2004), China (2008) e Londres (2012), relativamente aos investimentos públicos aplicados no esporte em geral. Ou seja, a fração Reais sobre Medalhas diminuiu.

Sempre houve reclamações sobre a falta de dinheiro e incentivos do Governo, mas agora, se não o mundo perfeito, pelo menos há a destinação para tal. E então, como explicar a retração das conquistas? Falta de competitividade? Recursos mal aplicados? Serão sempre muitos os motivos. Mas, tenho certeza que haverá sempre um cara-de-pau, um caradura, com razões e explanações convincentes para justificar o fiasco, o subdesenvolvimento esportivo, a baixa performance dos homens e mulheres de nossa pátria-mãe gentil.

É fato: Amarelamos em Londres. Dê uma olhadela, alheia às emoções patrióticas, nos momentos decisivos em alguns esportes nesta última Olimpíada e você vai constatar que quase chegamos lá. Quase. Apenas isso.

E é bom lembrar que no meio do caminho, em 2014, há outra obra faraônica pela frente: A Copa do Mundo de Futebol.

Deus permita que eu esteja errado no que aqui escrevo, e que minha falta de crença não nos leve ao fracasso. Eu torço, e o que me resta é somente torcer, que tudo dê certo nesses dois grandiosos acontecimentos e que o Brasil se eleve vitorioso nos Jogos e na Copa. Se não no número de medalhas, pelo menos no uso honesto dos recursos públicos: O povo brasileiro há de gostar e aplaudir.



Preto, o meu cachorro

 


- Marita, minha vizinha tem uma cadela que deu cria e ela não sabe o que fazer com tanto cachorrinho. Posso trazer um?

Era dona Luzia oferecendo para minha mãe um filhote de cão, na época em que morávamos na Gurigica. Dona Luzia trabalhava em nossa casa. Antes, já fora a cozinheira da minha avó Malvina nos tempos da pensão em Jucutuquara. A vida toda eu vi dona Luça, como nós a chamávamos, como uma senhora idosa que fazia parte da família. Chegava pela manhã, ficava por ali, sentava em seu banquinho no canto da cozinha, conversava com quem estivesse na casa, fazia o almoço e ia embora. Todos os dias.

E foi desse jeito que apareceu lá em casa um filhote, com pretos muito preto e os brancos muito branco. O nome dele veio numa unanimidade na família: Preto.

Preto permaneceu conosco durante muitos anos e morreu velho depois de complicações no intestino.

Vários anos depois é que descobrimos que era um mestiço de border collie. E o descobrimos não porque não fosse parecido como tal. Sim, ele era um bicho típico da sua raça, mas por causa das poucas informações que dispúnhamos naquele tempo.

Era um cachorro muito bonito, peludo e muito inteligente. Posso dizer mesmo que era um cão espirituoso e adorava brincar. Muito ativo, vivia correndo pelo quintal e não podíamos descuidar do portão, já estava ele fugindo para a rua. Voltava sempre para casa, mas sempre sujo, fedorento e às vezes estropiado e machucado. Em certa ocasião, ele passou quatro dias fora. Acostumamos com as fugas de Preto para a gandaia.

Voltava cansado e faminto, e depois de um banho, coisa que ele nunca apreciou, passava uma semana encostado dormindo e recuperando as forças.

Fora isso, era um grande companheiro para todos nós.

Depois de certa idade, deu para ficar meio safado. Às vezes não obedecia a ninguém, deitava num canto e fingia dormir. Só levantava dali quando bem entendia.

O que mais chamava a atenção em Preto eram suas expressões. Era típica sua cara de culpa quando fazia uma coisa que sabia estar errada, como entrar em casa ou dar uma cagada na garagem. Outra cara era a de pidão. Quando estava com fome ele olhava para mamãe com uma cara que era impossível alguém negar comida para ele. Mas a melhor expressão era quando estava alegre. Parecia que ria com aquela bocona aberta e arfante.

Certa noite, a madrugada já ia bem avançada, ouvimos os latidos de Preto na rua, acordando a todos. Alguém falou:

            - Deixaram o portão aberto e Preto fugiu de novo.

Pelo barulho de Preto, logo após concluímos que alguém havia entrado no quintal ou mesmo na casa. Papai se armou de um pedaço de pau e saiu bravamente, mas meio assustado, à caça do feroz invasor, enquanto os demais da casa fomos para a sacada da varanda ver Preto latindo na rua.

Papai deu de cara com um sujeito magro, suado e tremendo todo. Com a respiração bem agitada tentava se esconder num canto escuro do quintal, e quando percebeu que havia sido descoberto, correu em direção ao portão e fugiu em disparada, no mesmo instante em que Preto entrou e de dentro continuou a latir mais alto ainda.

Passado o susto, alguns vizinhos se aproximaram para saber se estava tudo bem. E foi aí que um deles, Pedro Porca, convicto bebedor de pinga do bairro comentou com papai:

            - É seu Toninho, cachorrinho esperto esse. Quando o ladrão entrou Preto saiu, e quando o ladrão fugiu Preto entrou. Mas não parou de latir!


Gestos e palavras

 


A sala protegida com cortinas quase fechadas estava na penumbra no meio da tarde. O tempo parecia parado em um especial momento de calma entre os dois. Lado a lado em suas poltronas, eles se encararam numa ternura infinita reafirmando um amor de tantos anos. Um amor que transcendeu as dificuldades, as brigas, o sexo, os anos, numa demonstração de permanência ao longo do tempo. Transformaram-se em amigos amantes. Ou amantes amigos.

O Sol insistia em matizar as sombras do ambiente através de seus raios oblíquos por onde se via a poeira flutuando na atmosfera morna e silenciosa.

Nesse momento ele pousou suave e distraidamente sua mão na mão dela enquanto lia um livro. Não havia necessidade de palavras, mas apenas o olhar para que sentissem como que em voz alta: “Você está aqui e eu te amo”.

Ela assentiu balançando a cabeça e retribuiu o gesto com um sorriso que durou uma eternidade, ou assim pareceu para eles que experimentavam o ócio da aposentadoria depois de tantos anos de trabalho sem fim.

O silêncio era tanto que era possível ouvir um zumbido dentro da cabeça, experimentado apenas poucas vezes.

            - A música terminou. Troca o CD. Parece que o silêncio faz muito barulho.

Ele se levantou e foi ao aparelho de som.

Desta vez, embalado pelo súbito momento de carinho pela mulher, colocou uma música suave.

            - Esta peça é aquela que você gosta.

            - Qual é mesmo?

            - Aquela que ouvimos em Praga, no verão passado.

- Ah, sim, isso mesmo. Estava anoitecendo na praça, ao ar livre. Qual era mesmo a orquestra?

Tentou lembrar, mas não conseguiu.

            - Depois eu vejo no caderninho do diário de viagem e te falo.

            - Tá bom.

Ele voltou para a leitura.

Ela continuou com seus pincéis e tintas fazendo o acabamento em uma caixinha artesanal que daria de presente para uma prima que fazia aniversário naquela mesma semana.

Viviam há tanto tempo juntos e ainda tinham um apego grande um pelo outro. De vez em quando inventavam coisas para sair da rotina. Ora era uma atividade manual, depois um hobby, tocar violão, jantar fora de casa, viajar.

Viajar era um capítulo especial na vida dos dois. Viagens memoráveis para várias partes do mundo. Algumas vezes fizeram junto com os dois filhos.

Bem depois, com a sala agora quase às escuras, ela pousou os pincéis sobre a mesa, se levantou e disse:

            - Vou fazer um café. Você quer?

            - Boa ideia. Coloca água no fogo que eu arrumo a mesa.

O clima entre os dois naquele instante era tão agradável que dava pena que tivesse de ser interrompido, mesmo que para tomar um cafezinho. Um cafezinho tantas vezes compartilhado entre ambos ao longo da vida.

Tinham uma combinação tácita, não escrita. Quem chegasse primeiro em casa, depois do trabalho, esperaria pelo outro para o café. Mas, sempre se telefonavam durante a tarde para saber que traria o pão.

Na cozinha, a água esquentando no fogão, enquanto ela punha o pó na cafeteira, ele se aproximou e a abraçou carinhosamente por trás. Por um momento ela ficou parada sentindo o calor de ambos. Em seguida, ela ficou de frente e se beijaram.

            - Eu te amo, mulher.

            - Eu te amo, marido.



Buenos Aires é aqui

 


Semana passada fui a Buenos Aires. O sábado amanheceu luminoso sob um céu azul. A brisa agradável do inverno sem nuvens que entrava pelas janelas do apartamento me deu vontade de andar um pouco por aí.

Não sei bem a razão, me veio à mente Buenos Aires. Não, não se trata da capital portenha, mas um Distrito de Guarapari, aqui, bem pertinho de Vitória.

Tomei o café da manhã e apressei a patroa na arrumação dos trecos para passarmos o dia fora. Pouca coisa, considerando que o almoço seria num restaurante qualquer pelo caminho. As tralhas se resumiram basicamente em algumas garrafinhas de água, máquina fotográfica, um pouco de dinheiro e o principal, o cartão de crédito.

O programinha empacotado que já repeti tantas vezes em outros lugares próximos da Capital, mas sempre muito bom: Passar o dia vendo paisagens diferentes para relaxar um pouco. Algumas vezes, revendo os mesmos lugares.

Minha mulher e eu, gostamos muito de andar à toa por aí.

Subimos com o Puma amarelo.

Ah, não havia mencionado antes, tenho um Puma GTE 1975, modelo Tubarão, amarelo e que é o meu tesouro. Eu o restaurei a menos de um ano. Ficou lindão e bem próximo ao original, mas com algumas essenciais melhorias no conforto. Mas isso é assunto para outra ocasião.

Pois então, depois de abastecer o Puma, rumamos em direção à Rodovia do Sol e em pouco mais de uma hora, já estávamos no começo da estrada da Pedra do Elefante, local onde se inicia a subida para Buenos Aires.

O caminho é bem pavimentado e a vista, deslumbrante. A certa altura, é possível avistar as praias ao longe. Dá pra ver Guarapari quase inteira.

Lá em cima, num recanto, passamos bons momentos próximos a uma cachoeira. O clima ameno, a conversa esticada e calma. Teve até uma limonada geladinha feita por uma senhora, dona da birosca do lugar. Numa sombra, fechei os olhos e cochilei.

Despertei da soneca com o barulho de vozes que vinham de cima do morro, perto de onde começava a queda d’água. Era a gritaria de adolescentes divertindo-se na corredeira.

Perto do meio dia, saímos em busca de um lugar para comer.

A caminho do núcleo urbano, observei a beleza dos inúmeros sítios ladeando a estrada, sempre bem cuidados e com um apelo chamativo, como um convite para parar, chegar e ser bem vindo às varandas repletas de sombras. O mundo, todo ele, deveria ser composto apenas de lugares assim.

Ao passar pelo centro, pude observar o jeito sossegado das pessoas nas ruas e nos bares. É bem verdade que grande parte daquela gente está ali apenas para o fim de semana porque provavelmente moram mais próximos de Vitória. Mas, apesar disso, e talvez pelo fato de estarem mais isolados, a vida passa mais serena por ali.

Descobrimos um restaurante localizado numa chácara.

Ao entrar, pude ver várias mesas ocupadas. Sinal de eu o lugar é bem conhecido. Veio nos atender à mesa uma mulher jovem com um cardápio sem nenhuma sofisticação. Deu para perceber que era um negócio familiar, o pai no caixa, a mãe, cozinheira.

Os pratos oferecidos eram bastante simples. Escolhemos uma galinha ao molho pardo com batatas, acompanhada de feijão, arroz e salada.

            - Sabe de uma coisa? – Disse minha mulher – É a melhor galinha ao molho pardo que já comi na vida.

Realmente, a comida estava muito saborosa. Comemos com calma, sem pressa.

A tarde avançava e o Sol descia já próximo ao topo dos morros quando resolvemos voltar.

Chegamos bem em casa. O dia foi ótimo.

O Puma amarelo voltou para a garagem.

Reencontro

 


A festa foi planejada com bastante antecedência e foram lembrados todos os detalhes para se tornar um grande acontecimento. Gugu e Jô não mediram esforços para realizar o reencontro da turma que, neste ano, aconteceu na própria Escola Técnica. Eles conseguiram juntar cerca de 400 pessoas, entre ex-alunos e suas famílias, das turmas de Edificações, Eletrotécnica, Mecânica, Estrada e Agrimensura da antiga ETFES, hoje denominada IFES.

Tudo foi cuidadosamente organizado e providenciado para que não faltasse nada: As carnes de qualidade e bem churrasqueadas, a cerveja geladinha, os atendentes muito atenciosos, e toda estrutura da Escola disponível para os convidados. Tudo estava uma beleza.

As camisetas ficaram um chiquê.

Foi uma tarde muito agradável, e carregada na cerveja e no churrasco. Tinha refri também. A chegada de cada colega era motivo de abraços e até lágrimas. Alguns mais exagerados gritavam, acenavam e chamavam a atenção para outros que já estavam no local.

Antigas amizades e remotas paqueras vieram à tona, cada um brindou aquele instante como a festa mais importante desde os tempos de escola. Muitos não se viam desde a formatura, em 1975.

Teve até o Coral Professora Maria Penedo, grande orgulho e motivo de satisfação, entoando o Hino da Escola. Todos os presentes cantaram juntos:

Na marcha incessante do progresso

Os corações vibrando de ardor,

Caminhamos, de par com o sucesso,

Trilhando a vereda do labor



Formamos com luta e sacrifício

Desta terra, a vanguarda industrial,

Somos todos irmãos em ofício,

Ansiando por um Brasil sem igual.



Grande forja de homens viris,

Impressora fiel de ideias sãs,

Celeiro imenso de almas febris,

Salve, Escola de jovens titãs!



Mas, e tem sempre um mas, minha turminha fez algo diferente: Como uma forma de manter a irreverência e rebeldia dos velhos tempos, lembrando das aulas que nós matávamos para ir para o boteco beber, Macarrão, Rios, Joninhas, Fregô, Francelino e eu combinamos de nos encontrar no Bar do Zé, em Jucutuquara, para uma espécie de concentração antes da festa.

Chegamos ainda pela manhã e fizemos uma farra. Entre cervejas, pingas, torresmos e ovos azuis cozidos, relembramos um montão de coisas da época em que estudávamos na mais importante escola do Espírito Santo.

Acho que, em meio a um sentimento meio egoísta, nossa antecipação foi até mais bonita que o Reencontro propriamente dito.

Casos quase esquecidos, detalhes tirados do fundo da lembrança, os projetos juvenis (os que deram certo e os que deram em nada), o sentimento geral de vitória ao constatar que nós seis crescemos na vida e permanecemos para contar a história.

Tiramos várias fotos. Em certo momento, para registrar a presença de todos do grupo, pedimos a um sujeito que estava no local para registrar uma foto nossa. Naquela bagunça toda, em meio às gargalhadas, ele enquadrou a máquina, orientou para juntar mais, fez a foto de um ângulo e mais outra em outra posição, conferiu e devolveu a máquina com um comentário:

- Quanta alegria, gente! Até parece que vocês saíram da prisão hoje!

Mais risadas.

Fregô se agarrou com Joninhas e quase caíram no chão de tanto rir, numa gargalhada escandalosa.

Ladrão de cabrito

 
Vida boa vida alegre, minha vida é um pagode,

Me criei robando cabra, vou morrê robando bode.

Luiz Gonzaga e Rui Moraes e Silva.

Certa feita, Carlinho, um conhecido que mora numa cidade do interior do Espírito Santo, estava na casa de sua namorada, quando soube que o seu sogro havia separado dois porquinhos para o almoço de aniversário dela que ia ser celebrado no fim de semana seguinte.

Sabe aquele tipo de gente que não pode ver um porquinho, um coelho ou um cabritinho que não sossega até conseguir roubá-lo?

Êta vício danado! Assim que soube dos porquinhos do sogro, pensou, tentou resistir, mas não teve jeito: Disse para a namorada que tinha que resolver alguma coisa na cidade e voltava logo. Disse isso, saiu, encostou o carro próximo ao cercado, agarrou um bicho, enfiou no porta malas e saiu de fininho.

Foi direto para casa, matou, limpou, separou todas as carnes e guardou tudo no freezer. Tomou um banho rápido e voltou correndo para a casa da namorada. Chegando lá, quando a namorada deu um cheiro nele, disse:

- Carlinho, você tá com um cheiro esquisito. Você tá com cheiro de porco...

Os amigos não se cansam de alertá-lo para parar com essa prática.

Já passou muito aperto por causa dessa mania, como da vez que, passando de carro por um sítio, avistou uns cabritinhos dando sopa atrás de uma cerca. Parou o carro ao lado da estrada. Ele estava com um amigo. Pegaram um carneirinho e colocaram no porta malas do carro e saíram para pegar outro. Estavam atrás de um bicho quando o dono da terra os avistou e saiu correndo atrás deles. Entraram no carro e em disparada, sumiram do local. Foi aí que perceberam que o porta malas estava aberto. Resultado: O carneirinho que haviam roubado escapou.

Decidiram que tinham que voltar para buscar o bicho fujão. No mesmo dia, retornaram e por cautela, pararam o carro num lugar mais afastado. Cuidadosamente, enquanto esperava com o carro ligado, o amigo entrou no sítio e subtraiu um bicho. Quando retornava para o carro segurando o cabrito pelas pernas e apoiado em seus ombros, o dono da terra começou atirar com uma espingarda. Na correria, ao entrar no carro, o cabrito bateu na beira da porta e quase caiu. Mas conseguiram fugir com o produto do roubo.

Já roubou até coelho e galinha.

Certa ocasião, ele foi a uma propriedade do tio de sua namorada para buscá-la quando viu uns cabritos e resolveu pegar um. Como sempre, enfiou o bicho na mala do carro e foi na direção da casa. Foi aí que sua namorada comentou:

- O tio sabe que você gosta e não liga se pegar um cabritinho dele.

- É sim, pode pegar, confirmou o tio. Não dou a mínima para esses cabritos.

Por essa ele não esperava. Perdeu a graça. Estava desapontado.

            - Quer saber? Assim eu não quero. Bom mesmo é roubado...

Abriu o porta malas, desamarrou e soltou o bicho, sob o olhar espantado de todos.

Às margens do Rio Marinho

 
Oh, seu doutor, nesse domingo de sol, o que me dá prazer é uma senhora pelada.

Clauduarte Sá

Ontem, logo depois que eu atravessei a Ponte do Camelo, dobrei à direita e segui em direção a Vila Velha. No caminho, ainda próximo à 2ª Ponte, passei ao lado do Rio Marinho. Devia ser horário de maré alta, ou então talvez tenha chovido muito na região, ou as duas coisas, sei lá, porque o nível do rio estava bem alto, a menos de um metro para chegar à rua.

Enquanto avançava lentamente no trânsito congestionado, do carro, pude observar uns meninos disputando uma pelada na rua que margeia o lado oposto do rio, formando uma cena típica de bairro de pouco movimento.

A correria da criançada e sua gritaria me levaram direto para minha infância em Jucutuquara. Naquela época eu vivia com os dedos dos pés esfolados de tanto jogar bola descalço na Avenida Paulino Müller, ainda pavimentada com paralelepípedos de pedra, próximo à Sorveteria Kimel e ao Bar Rock. Lá também havia um valão (hoje está todo coberto – virou uma galeria de esgoto).

Estava assim, esperando o trânsito andar, quando vi a bola dos meninos cair no rio. Todos correram para sua margem buscando uma maneira de resgatar a bola.

Do nada, surgiu uma comprida vara de madeira. Enquanto pescavam a bola, pude observar a superfície do rio. Sujo, feio, repleto de coisas boiando: Garrafas pet, sofá, fogão, um fusca meio submerso, a água imunda e parada. Demonstração perfeita de como a população, em parceria com as autoridades, tratam a natureza!

Com uma situação como essa, dá para reclamar quando chegam as grandes chuvas que faz o rio transbordar?

Especialmente em Vila Velha, eternamente lugar de toda enchente, não seria o caso de promover uma limpeza geral e uma posterior fiscalização, séria, contra o lançamento de lixo no rio?

Os garotos conseguiram a bola de volta e, mesmo suja, continuaram a brincadeira.

Logo em seguida, um menino levou um tranco de outro e caiu estatelado. Com a canela e o joelho arranhados, gritava de dor e xingava seu companheiro de bola, até que chegou uma senhora. Ela verificou o machucado do menino e o mandou entrar em casa. A mulher aproveitou para dar um esporro geral na garotada.

A pelada parou e os garotos se dispersaram.

Pensei como tudo é tão igual, apenas o tempo passou: A alegria, a correria e a força incrível da vida. Até aquela senhora, possivelmente a mãe do garoto machucado tinha a sua equivalente no meu tempo: Era dona Malvina Trovão, uma senhora que usava um imenso anel com pedra verde e quadrada, e que não podia ver a meninada jogando na rua que tentava capturar a bola. Aos gritos, dizia que não gostava de algazarra e que lugar de criança era na escola.

Tá certo!

Aqui eu devo lembrar que não se pode confundir Malvina Trovão com dona Malvina, minha avó, dona da pensão localizada na esquina do Bar Funil.

Quando o trânsito liberou a passagem, segui em frente, como, aliás, tenho feito por toda a vida. Seguir e frente!

Permanecem as recordações e a saudade.